ENTENDENDO A SITUAÇÃO DA GUERRA NO MIANMAR.
- Francesco Battista Casali
- 28 de jun. de 2024
- 7 min de leitura
O Brasil como nação é extremamente diverso à um nível cultural e social, assim como muitas outras nações são, nota-se ao redor do mundo a recorrência na história de guerras civis, como uma espécie de etapa que um povo há de atravessar para avançar em seu desenvolvimento, o próprio Brasil apesar de nunca ter tido um conflito extenso, interno e que convolvesse todo o território nacional, já atravessamos a guerra dos farrapos (1835 – 1845) ou a guerra de canudos (1896 – 1897) como conflitos internos regionais.
Para muitos o conceito de uma guerra civil pode parecer tópico histórico, porém isso não passa de uma ilusão, atualmente a nação do Mianmar, no sudeste asiático, vem enfrentando uma violenta guerra civil que convolve todo o território nacional, e é um resultado de mais de 70 anos de tensão política e social. Neste artigo irei expor um pouco sobre esse tópico muitas vezes ofuscado por conflitos mais relevantes para as grandes mídias como a guerra na Ucrânia ou o em Israel.
Palavras-Chave: Mianmar; Guerra Civil; Sudeste Asiático; Ásia; USDP; NLT; Golpe Militar;

Contexto Histórico:
Para entender como o Mianmar chegou nessa infeliz situação, primeiro deve-se entender sua origem. Não adentrando na história pré-colonial birmanesa, Mianmar, também historicamente conhecida como Birmânia, localizada no sudeste asiático, com a China ao norte, Índia ao oeste, Tailandia ao leste e o oceano indico ao sul através da baia de bengala. Tornou-se uma colônia Inglesa em novembro de 1885 e foi anexada à colônia da Índia Britânica após três guerras anglo birmanesas, tendo a última delas durado menos de duas semanas (VERLAAN; MORGAN; BRITANNICA, 1999; STEINBERG; AUNG-THWIN; BRITANNICA, 1999).
Como colônia britânica, o impacto sentido pela região foi enorme, os ingleses retiraram a monarquia e monges locais, assim desestabilizando por completo uma sociedade cujos conflitos internos por poder já eram extensos, priori à chegada dos europeus, Birmânia já lidava com diversos conflitos por parte de inúmeras dinastias e grupos locais (VERLAAN; MORGAN; BRITANNICA, 1999; STEINBERG; AUNG-THWIN; BRITANNICA, 1999).
Apenas em 1920 começou a se desenvolver uma ideia de nacionalismo Birmanes quando alguns indivíduos locais, após estudar em Londres graças ao laço colonial, ao retornarem alimentaram políticas nacionalistas na região, especialmente na cidade de Rangum uma vez que nela foi-se reconhecida a primeira universidade Birmanesa em 1920 (VERLAAN; MORGAN; BRITANNICA, 1999; STEINBERG; AUNG-THWIN; BRITANNICA, 1999).
Com a erupção da segunda guerra mundial na Europa, todo o mundo começou a notar suas consequências. Quando o Japão imperial, do eixo anexou Bangkok e o território da atual Tailandia, em dezembro de 1941, a Birmânia era a próxima parada, e no final do ano seguinte foi anexada com sucesso pelos japoneses. Em 1943 quando os japoneses começaram a ser pressionados pelos aliados, Birmânia foi declarada independente pelo governo de Tokio, apesar que isso não se passava de uma faixada, uma vez que o exército japonês continuou a ocupar o território, até que em março de 1945 os Birmaneses foram enfim libertados e aliaram-se aos Britânicos (VERLAAN; MORGAN; BRITANNICA, 1999; STEINBERG; AUNG-THWIN; BRITANNICA, 1999).
Após um período de instabilidade e insegurança quanto ao futuro, negociações pacíficas seguiram-se entre os líderes populares com o governo britânico, como resultado, a Birmânia foi declarada independente em janeiro de 1947 e em junho decidiu retirar-se da comunidade britânica das nações (VERLAAN; MORGAN; BRITANNICA, 1999; STEINBERG; AUNG-THWIN; BRITANNICA, 1999).

Existe uma nação unificada?
Apesar de suas aversões com os britânicos e participação contra o Japão do eixo, a população do Mianmar apenas uniu-se perante oponentes maiores, pois assim que retomou sua independência, apesar de manter um posicionamento majoritariamente neutro internacionalmente durante maior parte de sua história pós segunda guerra mundial, conflitos internos derivando de minorias regionais ou grupos políticos insatisfeitos nunca cessaram (AUNG-THWIN; STEINBERG; BRITANNICA, 1999).
Tendo atravessado um governo socialista ditatorial de 1962 a 1988, em maio de 1990, após ser renomeado como Mianmar, a nação teve sua primeira eleição multipartidária em 30 anos. Apesar disso, nos anos 2000, o governo local teve suas relações com os estados unidos da américa e a união europeia restringidas e foi acusado de infringir direitos humanos pelas nações unidas. Em 2008, com os militares no poder da nação, uma nova constituição foi escrita após pressão popular. A nova constituição, deixou espaços para os militares manterem parte de seu poder mesmo após retirarem-se da liderança da nação, entre as diversas brechas deixadas pelo exército na constituição, uma foi apontada por especialistas como “a cláusula do golpe”, a qual ao ter um estado de emergência declarado pelo presidente, todo o poder seria entregue aos militares (AUNG-THWIN; STEINBERG; BRITANNICA, 1999; MCKENNA; BRITANNICA, 2022).
Desde sua independência, o Mianmar vem lidando com diversos protestos, manifestações, movimentos iniciados por minorias étnicas no país, a ideia de uma nação unificada, apesar de ter-se tornado realidade, não ultrapassa o papel, uma vez que na prática diversos grupos não aceitaram, e ainda não aceitam tal unificação. Para aqueles cujo problema talvez não fosse a unificação, então era o governo autoritário do momento, independente de qual razão, o resultado prático é uma nação que no mapa mundo é única, mas na realidade existem dezenas de fronteiras étnicas e culturais que são ignoradas pelo resto do mundo (AUNG-THWIN; STEINBERG; BRITANNICA, 1999).
Inevitavelmente, como previsto por muitos, tal instabilidade birmanesa, combinou em 2021 em um golpe de estado promovido pelos militares, derrubando um governo eleito democraticamente. Conforme apurado pela enciclopédia Britannica, tais ações deram-se em decorrência das eleições parlamentares de 2020, nas quais o partido NLD (Liga nacional pela democracia) obteve a maioria das cadeiras, assim enfraquecendo o partido USDP (Partido pela união da solidariedade e desenvolvimento), sendo esse segundo, ultranacionalista e fortemente apoiado pelos militares. Após os resultados das eleições de 2020 serem revelados, não surpreendentemente o USDP e o exército não reconheceram os resultados, alegando fraude e irregularidades, após exigirem reeleições, e adio da abertura do parlamento, tendo ambos os pedidos foram negados os militares recorreram a um golpe de estado (MCKENNA; BRITANNICA, 2022).

Pós golpe
Como poderia-se prever, o cenário internacional condenou o golpe de estado e inúmeros protestos começaram em todo o país, inicialmente pacíficos que porém rapidamente escalaram para protestos de desobediência civil e a formação de grupos rebeldes opositores ao governo (MCKENNA; BRITANNICA, 2022).
Agora já a 4 anos dentro desse conflito, a situação é crítica, de acordo com informantes de Rangum providenciados pelo canal alemão de notícias, DW, desde antes o golpe, havia mais de 24 grupos étnicos armados na nação, juntamente de centenas de milicias com tropas variando desde centenas até 30 mil em outras. Após o golpe, entre 250 e 300 outros grupos armados foram adicionados a essa lista (EBBIGHAUSEN, 2024).
O aspecto mais peculiar deste conflito, é os diversos confrontos entre facções de diversos grupos étnicos, resultando em um cenário onde o inimigo não é apenas o governo, mas também outras facções, sendo uma guerra que como denominada pela própria DW, uma guerra de “Muitos contra muitos” (EBBIGHAUSEN, 2024).
Apesar desses conflitos entre grupos, o governo central é o que mais vem recuando, perdendo terreno, autoridade e controle no país, apesar de maiores números e equipamentos, a moral e suporte popular recebido pelos diferentes rebeldes vem resultando em uma progressiva derrota dos militares (HEIN, 2024).
Considerações Finais
Esse conflito muitas vezes esquecido, que vem arruinando completamente um país inteiro, é muito difícil de prever, a possibilidade de o Mianmar acabar fragmentando-se é debatida em luz dos conflitos étnicos promovidos entre as próprias facções, por outro lado também não se pode ignorar o cenário em que ao derrotarem os militares, uma das facções tome seu lugar e o autoritarismo recomesse mudando apenas de cara.
Fato é que enquanto o governo central não for derrubado, essa guerra muito dificilmente verá um fim e entrará para os livros de história, depois de sua derrota veremos qual será o continuar ou desfecho dessa tragedia.
Novamente gostaria de trazer a reflexão inicial do artigo, sobre a necessidade histórica de um povo atravessar uma guerra civil para emergir mais forte e desenvolver-se, certamente não tenho nenhuma autoridade para afirmar algo tão forte assim, porém gostaria de pôr o questionamento na mesa.
Até o término do conflito, podemos apenas torcer para que o número mínimo de civil acabe mortos e que a população birmanesa consiga superar esse momento de turbulência.
Referências Bibliográficas:
AUNG-THWIN, Michael A.; STEINBERG, David I.; THE EDITORS OF ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA. Myanmar Since 1988. Britannica, [S. l.], p. 1-1, 26 jul. 1999. Disponível em: https://www.britannica.com/place/Myanmar/Myanmar-since-1988. Acesso em: 27 jun. 2024.
AUNG-THWIN, Michael A.; HTIN AUNG, Maung; THE EDITORS OF ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA. Myanmar. Britannica, [S. l.], p. 1-1, 26 jun. 1999. Disponível em: https://www.britannica.com/place/Myanmar/additional-info#history. Acesso em: 27 jun. 2024.
BBC. Myanmar Country Profile. BBC, [S. l.], p. 1-1, 26 maio 2023. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-asia-pacific-12990563. Acesso em: 27 jun. 2024.
EBBIGHAUSEN, Rodion. Myanmar: Civil war of ‘many against many‘ tearing country up: Four years ago, a coup plunged Myanmar into civil war, proliferating armed groups in a place already rife with ethnic divisions. With the country disintegrating, neighbors are alarmed. DW, [S. l.], p. 1-1, 27 abr. 2024. Disponível em: https://www.dw.com/en/myanmar-civil-war-of-many-against-many-tearing-country-up/a-68938965. Acesso em: 27 jun. 2024.
GHITIS, Frida. Myanmar's Civil War May Have Just Reached a Turning Point. World Politics Review, [S. l.], p. 1-1, 16 nov. 2023. Disponível em: https://www.worldpoliticsreview.com/myanmar-civil-war-shan/. Acesso em: 27 jun. 2024.
HEIN, Ye Myo. Nine Things to Know About Myanmar‘s Conflit Three Years On: As the country heads into a decisive year, Myanmar’s military is losing ground to resistance forces. United States Institute of Peace, [S. l.], p. 1-1, 30 abr. 2024. Disponível em: https://www.usip.org/publications/2024/04/nine-things-know-about-myanmars-conflict-three-years. Acesso em: 27 jun. 2024.
MCKENNA, Amy; THE EDITORS OF ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA. 2021 Myanmar Coup d'état. Britannica, [S. l.], p. 1-1, 1 12 jul. 2022. Disponível em: https://www.britannica.com/event/2021-Myanmar-coup-d-etat. Acesso em: 27 jun. 2024.
STEINBERG, David I.; AUNG-THWIN, Michael A.; THE EDITORS OF ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA. The Administration of Dynastic Myanmar. Britannica, [S. l.], p. 1-1, 26 jul. 1999. Disponível em: https://www.britannica.com/place/Myanmar/The-administration-of-dynastic-Myanmar. Acesso em: 27 jun. 2024.
VERLAAN, Philomene A.; MORGAN, Joseph R.; THE EDITORS OF ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA. Bay of Bengal: bay, Indian Ocean. Britannica, [S. l.], p. 1-1, 26 jul. 1999. Disponível em: https://www.britannica.com/place/Bay-of-Bengal. Acesso em: 26 jun. 2024.
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