Os desafios da Palestina ocupada perante a pandemia da COVID-19
- Jessica da Silva Rodrigues
- 3 de jun. de 2021
- 9 min de leitura

Ratto, Michelle. 2020
A pandemia do Coronavírus (COVID-19) é uma preocupação de saúde pública, declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma "Emergência de Saúde Pública de Preocupação Internacional". Assim, desde o início de 2020, governos de todo o mundo desenvolvem estratégias para combater o novo Coronavírus, popularizado após casos registrados na China. Dessa forma, os países lançaram suas respectivas campanhas de vacinação e incentivaram os cidadãos a seguir as recomendações de prevenções anunciadas pela OMS. Embora alguns países da Ásia controlam recursos para combater a pandemia, outros países da região, principalmente os da parte Ocidental, não têm a mesma disponibilidade para efetivar o combate.
É especialmente o caso daqueles sob domínios prolongados, como a Palestina, que está em um desde 1948, ano da primeira Nakba (episódio em que metade da população palestina foi sistematicamente expulsa de suas residências para o estabelecimento de Israel). A situação política na Palestina torna a segurança sanitária dos palestinos ainda mais precária durante a atual época pandêmica e o controle israelense em curso sobre o território evidencia uma situação humanitária que causa o alarde de defensores dos direitos humanos. Israel, país pequeno, governado pelo Primeiro-Ministro Benjamin Netanyahu, um não-negacionista, vem ganhando espaço na mídia em razão do sucesso de sua campanha de vacinação, se estabelecendo mundialmente como referência em estratégias de imunização. No entanto, ao negar a responsabilidade de vacinar árabes-palestinos sob ocupação, o país ocupante viola o direito internacional assegurado pela Quarta Convenção de Genebra, a qual defende que o poder desta posição deve aplicar medidas profiláticas e preventivas necessárias para combater a propagação de doenças contagiosas e epidemias em todo o território.
A Organização Mundial da Saúde defende, ainda, que as vacinas são uma ferramenta necessária para a mudança de jogo, mas que, para um futuro próximo, as pessoas devem persistir no uso de máscaras, nos hábitos de higiene pessoal com uso de álcool em gel e sabão, em boas condições de ventilação e no distanciamento social. No contexto palestino, todavia, o povo está inabilitado de seguir as medidas preventivas recomendadas pelo maior órgão referência em saúde mundial, em razão da subordinação à proliferação de contágio da COVID-19, devido restrições. A impossibilidade de cumprir com o distanciamento social na Faixa de Gaza, onde dois milhões de palestinos vivem sob um cerco aéreo, marítimo e terrestre liderado por Israel, se dá por conta do bloqueio que ocorre desde o ano de 2006. Ademais, não há abastecimento de água suficiente para a manutenção da higiene manual e atendimento médico eficiente para toda população em Gaza e na Cisjordânia. Em 2019, Michael Lynk, especialista da Organização das Nações Unidas, em seu relatório ao Conselho de Direitos Humanos, apresentou uma pesquisa e afirmou que “A política de Israel de usurpar recursos naturais palestinos e desconsiderar o meio ambiente roubou os palestinos de ativos vitais”. Segundo a análise, desde de 2017, mais de 95% da água de Gaza é imprópria para consumo humano, por conseguinte da extração, contaminação por esgoto e mar, bloqueio de 12 anos e conflitos. O relatório também destaca a problemática do descarte de resíduos nocivos por parte de Israel nas “zonas de sacrifício”, na Cisjordânia. Devido aos demais acontecimentos geopolíticos desencadeados ao decorrer de décadas, os palestinos possuem pouca possibilidade de assistência médica. Recentemente, apesar do contexto pandêmico que estamos vivenciando, a infraestrutura médica palestina não foi poupada. Na vila de Khirbet Ibziq (Cisjordânia), em março de 2020, uma clínica comunitária em construção foi destruída por militares israelenses, o que agravou ainda mais a precarização do sistema médico do território. Em dezembro do mesmo ano, os médicos que prestam serviço em Gaza declararam que o sistema de saúde está próximo de colapsar por motivo de insuficiência de equipamentos. Dessa forma, os árabes também são privados de seguir a recomendação da OMS a respeito das boas condições de ventilação, já que apenas cerca de 100 ventiladores estão disponíveis aos hospitalizados vítimas do vírus, segundo o que foi noticiado pela Middle East Eye, uma das maiores fontes midiáticas no que tange acontecimentos da Ásia Ocidental (Oriente Médio).
Ainda no contexto da precariedade da assistência médica, no dia 12 de dezembro do ano passado, as autoridades israelenses alertaram que os residentes de Gaza deveriam usufruir do tratamento fornecido por médicos israelenses apenas se houvesse algum progresso nas negociações sobre a libertação de civis israelenses e soldados aprisionados por Hamas (movimento militante palestino que governa a Faixa de Gaza desde 2007). Essa mesma narrativa foi utilizada como argumento perante ao bloqueio de vacinas para Gaza. Dessa maneira, perante a pandemia, a população palestina lida com a crise sanitária, a falta de suprimentos e o desprovimento de imunização por meio legal de vacinação, acometida, então, pela falta de recursos essenciais e básicos para a contenção da disseminação do vírus.
Durante o mesmo mês, foi esperado que os palestinos tivessem acesso a doses de 4 milhões da vacina de origem russa, Sputnik V, no início deste ano. Isso se fortaleceu por conta da visita que Sven Kuhn von Burgsdorff, representante da União Europeia, realizou na Faixa de Gaza. Ao longo de sua passagem no território palestino, Burgsdorff, ao reconhecer os fatores sob os quais os cidadãos estavam condicionados, alegou que a UE auxiliaria os moradores de Gaza a obter imunização, pois, respeitando o direito internacional, cabe aos detentores de poder prestar amparo. No entanto, ao desrespeitar leis e acordos internacionais, Israel bloqueou a entrada de lotes da Sputnik V, que embate a SARS-CoV-2, na faixa de Gaza. A ministra palestina, Mai Al-Kaila, no dia 15 de fevereiro deste ano, anunciou que Israel estava bloqueando, precisamente, a entrada de 2.000 doses da vacina, que foram enviadas pelo Ministério da Saúde ao território palestino. Al-Kaila alegou que as doses possuíam como destinação os profissionais de saúde que se mantiveram na linha de frente do combate ao Coronavírus. A princípio, o plano da Autoridade Palestina (AP) era dividir os insumos com a Faixa de Gaza. Até o momento do bloqueio, Gaza não possuía nenhuma pessoa vacinada entre os mais de dois milhões de habitantes. Já na Cisjordânia, o processo de imunização iniciou-se na linha de frente após receber 2.000 doses transferidas por Israel, que sofreu pressão das Nações Unidas e ONGs. No início de fevereiro, o Ministério da Saúde Palestino anunciou o início da campanha de vacinação em um comunicado que afirmava que Mai Al-Kaila tinha recebido a primeira dose juntamente com trabalhadores que atuam nas unidades de cuidados intensivos para pacientes que contraíram o Coronavírus – a declaração não reconheceu as 2.000 doses da vacina do laboratório Moderna, que foram cedidas por Israel.
A desigualdade de acesso à vacinação entre israelenses e árabes-palestinos ficou ainda mais evidente durante este mesmo período do mês, no qual Israel se tornou referência no âmbito de estratégia de vacinação, em razão de portar mais doses do que era necessário e por administrar vacinas em um ritmo melhor que o de qualquer outro país, enquanto palestinos caminhavam para a denominada segunda onda, influenciada pela “cepa do Reino Unido”, B.1.1.7. A ação em prol da imunização israelense, que se iniciou em dezembro de 2020, fez Israel desfrutar da maior cota per capita de doses inoculadas no mundo, permitindo a liderança do país na aplicação de vacinas para a COVID-19. Os dados analíticos da Our World in Data apresentam que no dia 1 de março deste ano, 55.03% da população israelense estava imunizada com pelo menos uma dose de vacina. Em 25 de abril, a taxa cresceu para 62.12%. Em contrapartida, o resultado da pesquisa demonstra que, no mesmo dia, apenas 3.33% da população palestina se encontrava imunizada.
Grupos direcionados à reivindicação dos direitos humanos efetuaram um alarde a respeito da escolha de Israel de não prover vacinas aos árabes na Cisjordânia e em Gaza. "Embora Israel já tenha vacinado mais de 20% de seus cidadãos, incluindo colonos judeus na Cisjordânia, não se comprometeu a vacinar palestinos que vivem no mesmo território ocupado sob seu regime militar", disse a Human Rights Watch acerca da decisão. Israel, por sua vez, defendeu a atitude, fundamentando-a nos Acordos de Paz de Oslo (1993). O conjunto de acordos assinados na Noruega, em 1993, entre a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e o governo israelense, colocou a área da saúde da Cisjordânia e de Gaza sob o comando das autoridades palestinas. No entanto, a quarta Convenção de Genebra, responsável pela estabilidade de leis internacionais sobre o Direito Humanitário Internacional, a partir do artigo 56°, determina a Israel, como uma força de ocupação, o fornecimento de amparo médico à população palestina, a fim de conter a propagação da pandemia. A Anistia Internacional defende que Israel violou suas obrigações como um poder de ocupação ao não disponibilizar vacinas aos milhões de árabes situados nos territórios mencionados, nomeando a situação de “discriminação institucionalizada”. Em 17 de março, a AP, por meio do mecanismo COVAX, recebeu o primeiro lote da vacina Pfizer, com 37.440 doses, e da vacina AstraZeneca, com 24.000 doses. Esse carregamento foi transferido à cadeia de ultrafrio do Ministério da Saúde e às instalações de armazenamento de vacinas nos territórios palestinos.
Em uma análise breve, é possível identificar que a crise sanitária e a restrição da vacinação foram responsáveis por mais de três mil mortes de árabes-palestinos até o momento. Entre os mortos está Saeb Erekat, um dos líderes da Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Erekat confirmou, em 8 de outubro de 2020, que havia sido infectado pelo Coronavírus, e em 10 de novembro de 2020, no hospital Hadassah Ein Kerem, veio ao óbito aos 65 anos. Atualmente, depois de mais de um ano de pandemia, dados seguem anunciando o aumento desenfreado de casos e mortes por COVID-19 em territórios palestinos. Durante um curto período de tempo, de 5 a 12 de maio, a Palestina registrou 4.349 casos de COVID-19 e clamou por 106 palestinos que perderam a vida em decorrência do vírus. Ao mesmo tempo, entre os mais de 4 milhões palestinos, 232.737 pessoas foram vacinadas contra a doença na Cisjordânia e 38.793 na Faixa de Gaza. Tais dados se tornaram acessíveis ao público por meio dos relatórios diários realizados por Al-Kaila.
Apesar dos enclaves enfrentados por causa do controle israelense, os governos palestinos e os moradores desempenharam iniciativas comunitárias para evitar a propagação do vírus nas províncias palestinas e fornecer amparo aos mais vulneráveis economicamente, com ações que visam a contenção da COVID-19, isolamento, controle e solidariedade. As instituições da Província de Nablus lançaram uma campanha para arrecadar fundos em prol de enfrentar o Coronavírus. Assim, doações foram incentivadas para garantir o tratamento dos infectados e ajudar as famílias com renda insuficiente. A AP lançou o Plano Nacional de Resposta a COVID-19, que delineou as medidas estratégicas de vários setores-chave, incluindo saúde, economia e proteção social para conter o surto. A prefeitura de Nablus enviou para os cidadãos 15 toneladas de frutas e hortaliças. O noivo, Youssef Abu Zneid, de 23 anos, do campo de refugiados de Shuafat, em Jerusalém Oriental, cancelou sua cerimônia de casamento marcada para o dia 14 de março de 2020, depois do surto de COVID-19 se alastrar pela Cisjordânia. Abu Zneid doou a alimentação da festa para o Comitê De Belém, Zakat, para ocorrer a distribuição para os moradores em quarentena na cidade. A cidade palestina, Hebron, também deu amparo à população, enviando um comboio de alimentos e ajuda médica para Belém, por meio de ações realizadas na Câmara de Comércio e Indústria. Aghwar Shamaliyah despachou no território outro comboio carregado de vegetais e leguminosas. Ao decorrer do ano passado e até o momento, o Ministério do Interior, administrado pelo Hamas, impôs diversos lockdowns em toda a Faixa de Gaza devido ao aumento do número de infecções pela COVID-19. Durante os eventos, apenas serviços essenciais permaneceram abertos. A estratégia de lockdown também fez parte do planejamento implantado na Cisjordânia; O Primeiro-Ministro da Palestina, Mohammad Shtayyeh, também emitiu uma série de ordens, incluindo o fechamento de institutos educacionais e proibição de circulação de palestinos em cidades palestinas (exceto para os trabalhadores da saúde).
Referências Bibliográficas
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