Round 6: a Triste Realidade do Referencial de Desenvolvimento Sul- Coreano
- Maria Thais R. Medeiros
- 25 de nov. de 2021
- 11 min de leitura

RESUMO
O artigo busca analisar o boom do desenvolvimento socioeconômico Sul Coreano e o cenário internacional a qual esse período estava inserido, além disso, o artigo também analisa a desigualdade socioeconômica que também se desenvolveu ao longo dos anos no país de referência de desenvolvimento, por meio da série Sul Coreana Round 6 que faz uma crítica continente ao sistema capitalista.
Palavras chave: Capitalismo, desenvolvimento, Sul Coreano, Round 6, classes sociais, desigualdade, jogadores.
1. INTRODUÇÃO
No dia 17 de setembro de 2021, foi transmitido o primeiro episódio da série que veio a se tornar um dos maiores sucessos já produzidos pela Coreia do Sul. Round 6 oferece uma crítica contundente à desigualdade social e econômica que se instalou ao longo dos anos no país que servia de referencial de desenvolvimento econômico para outros países em desenvolvimento. A série produzida pela Netflix leva os telespectadores por uma jornada de nove episódios, onde inicialmente somos apresentados a um grupo de pessoas com vidas totalmente diferentes, mas enfrentando a mesma realidade de uma vida repleta de dívidas e misérias.
Um homem que fica desempregado e afundando em dívidas de jogos de azar; um gestor de fundos mal sucedidos; um idoso acometido pelo câncer terminal; um trabalhador imigrante paquistanês e uma desertora norte-coreana, junto de centenas de outros indivíduos igualmente afundados no falho sistema capitalismo sul-coreano se veem obrigados a apostarem suas últimas fichas em uma série de jogos de sobrevivência, inspirados em jogos tradicionais infantis sul-coreanos, que determinam sua vida e sua morte em troca de uma recompensa de 46,5 bilhões de wons sul-coreanos (cerca de R$ 214 milhões) para o único vencedor.
Dentro disto, o artigo busca analisar os fatores que impulsionaram o crescimento econômico Sul Coreano e a desigualdade social que se desenvolveu no país ao longo dos anos, utilizando-se de exemplos ilustrados no decorrer dos nove episódios da série Round 6.
A princípio discutiremos o cenário internacional do período em que ocorreu o boom econômico na Coreia do Sul e como os fatores externos contribuíram para seu desenvolvimento, que posteriormente levou ao seu declínio no que se diz a igualdade socioeconômica. A criação das grandes empresas familiares também é discutida, visto que, os chaebols formam o pilar econômico do país.
O acúmulo de distribuição de riqueza entre uma pequena parte da sociedade e a desigualdade social que se reflete a partir disso é também analisada e comparada à vivência de alguns personagens de Round 6. Utilizamos também as análises do jornalista Frédéric Jardin quanto à questão dos imigrantes, assim como utilizamos teorias Marxistas para explicar o sistema capitalista e a divisão de classe social, que se relaciona como a estrutura dos participantes de Round 6.
Coreia do Sul e o seu “desenvolvimento”
Ainda unificada, a Coreia de 1910 a 1945, foi colônia do Japão, sendo assim, não possui governo próprio, contudo, após o colapso que sucedeu o Japão e com o fim da Segunda Guerra Mundial (1945), os Estados Unidos e à União soviética reuniram-se na Conferência de Potsdam onde determinaram o futuro da península ao dividi-la em duas, sendo que a parte norte ficou sob a influência da URSS e a parte sul influenciada pelos Estados Unidos, posteriormente esse fator contribuiu para as divergências ideológicas que se estabeleceram na região coreana.
Os principais agentes desse conflito eram os sistemas socialista e comunista herdados das Grandes Potências que disputavam na Guerra-Fria. Deste modo, as Coreias do Sul e do Norte estão engajadas em uma guerra civil desde 1950, e embora as ações militares tenham cessado em 1953, a região ainda se encontra em um estado de animosidade.
Entretanto, mesmo diante desse cenário conflituoso, a República da Coreia do sul, sob o governo autocrático de Syngman Rhee e a ditadura de Park Chung-hee, alcançou um rápido crescimento econômico ao investir na formação de grandes empresas controladas por um grupo familiar, os chamados chaebols (ou campeões nacionais) que hoje detêm grandes multinacionais como a Samsung e Hyundai.
O “Milagre do Rio Han” transformou o país dirigido pelo Park Chung-hee, que contava com uma renda per capita de US $82, que consequentemente levava a Coreia do Sul e outras regiões enfrentarem problemas socioeconômicos, como Gana, Senegal, Zâmbia e Honduras. Todavia, o acelerado processo de industrialização após a Guerra das Coreias elevou a região Sul coreana a uma das principais economias do mundo em poucas décadas, agora tendo uma renda de US $1,5 trilhão, enquanto que a Coreia do Norte, ainda governada pela família Kim teria seu PIB estimado em pouco mais de US $27 bilhões.
Para o professor de estudos internacionais na Universidade Sogang e chanceler Sul-Coreano Cho (2010), o ambiente econômico internacional em torno da Coreia do Sul favoreceu seu desenvolvimento de forma abrangente. O constante apoio Norte-Americano; o acúmulo de recursos enviados do Japão como forma de reparação e também empréstimos foram cruciais. Além disso, a aquisição de capitais estrangeiros foi outro impulsionador desse desenvolvimento, tendo como fundamento o endividamento externo.
Ainda segundo Cho (2010), poucos países em desenvolvimento tiveram a oportunidade de remeter dívidas adquiridas do exterior para o investimento industrial, sobretudo pelo curto desenvolvimento do mercado capital da época, entretanto, o bom relacionamento da Coreia do Sul com os EUA no cenário da Guerra-Fria e o seu envolvimento na guerra do Vietnã, mesmo à custa do sacrifício de muitos jovens soldados sul-coreanos, garantiram a entrada da região nos setores internacionais.
Para o especialista em desenvolvimento econômico político-internacional Carlos Medeiros (1997), da universidade federal do Rio de Janeiro, o fluxo de contratação de créditos no mercado internacional alterou o desenvolvimento de países periféricos, todavia, os países que possuíam relação com os EUA e com o Japão foram os grandes beneficiados. Como foi o caso da Coreia do Sul, que mesmo com o colapso do neoliberalismo, que levou a América-Latina a estagnação econômica, continuou a se desenvolver, uma vez que, os EUA e o Japão foram uma espécie de locomotiva para a Coreia do Sul à medida que os recursos entraram em colapso nas contas externas.
Por outro lado, o enorme crescimento Sul-Coreano não favoreceu o país como um todo, dado que, a qualidade de vida de grande parte da população não se desenvolveu como deveria. Distante do que se vendia, nunca existiu um país de fato, desenvolvido, de modo que apenas uma pequena parcela da população possuía um padrão elevado de vida, enquanto a outra grande parte era condicionada à extrema pobreza. Segundo a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). O coeficiente de Gini (medida usada para avaliar a desigualdade em uma sociedade por meio de escala de 0 a 1, em que os resultados mais próximos a 0 indicam maior igualdade do que aqueles próximos a 1) indica que Coreia do Sul se encontra em uma escala de 0,35, no que se diz respeito à igualdade social.
“A Coreia do Sul tem uma taxa de crescimento como a dos países desenvolvidos e isso significa que não está tirando as pessoas da pobreza da maneira que deveria, então há um sentimento de que as pessoas estão imobilizadas" (Miller, Owen. 2020).
A luta constante dos Sul-Coreanos que se encontram em uma posição econômica desfavorável não só tem prejudicado na sua qualidade de vida, mas também elevou o índice suicídio no país, que se importa mais em manter o controle econômico do que a qualidade de vida dos seus nativos. O governo concentra seus esforços no contínuo apoio aos conglomerados familiares, que também, pouco contribui para uma mudança econômica no país. Ao contrário disso, os chaebols têm aberto espaço para acúmulos de monopólios e escândalos de corrupção sem nenhuma punição do governo. O escândalo envolvendo o CEO da Samsung é um exemplo disto.
O vice-diretor da Samsung, Lee Jae-yong foi preso em 2017, por envolvimento em um escândalo que, também envolvia Park Geun-hye, a então presidenta da Coreia do Sul, em um esquema de tráfico de influência. Apesar disso, mesmo que Lee tendo sido condenado a cinco anos de prisão obteve a redução para o comprimento da pena, com a justificativa de que o herdeiro da Samsung era uma peça importante para a economia do país.
Dívida e desigualdade
O endividamento das famílias Sul Coreanas aumentou de forma grandiosa nos últimos anos, chegando a superar 100% de PIB (Produto Interno Bruto), refletindo na qualidade de vida da sociedade. Todavia, a grande questão está na distribuição de riquezas do país, visto que, os 20% mais ricos detêm um patrimônio líquido 166 vezes maior que os dos 20% mais pobres. Em 2017, esse número aumentou para 50% e o aumento da taxa de juros deixou grande parte da sociedade que se encontrava em uma posição menos favorecida economicamente em condições precárias para lidar com os infortúnios de uma vida.
O acesso à saúde, educação e moradia de qualidade tornou quase que impossível à classe baixa e média Sul Coreana, que enfrenta uma crescente taxa de desemprego. Por outro lado, após “camuflar” a desigualdade socioeconômica do país, o governo de Moon Jae-in anunciou medidas de restrição a empréstimos com o objetivo de reduzir a dívida de uma sociedade sem perspectiva. Diante desse cenário muitas pessoas são levadas a recorrer a credores com custo de risco mais elevado.
Como podemos observar em Round 6, quando Seong Gi-hun, um viciado em jogos de azar é obrigado a assinar um documento dando autorização ao um gângster de retirar seus órgãos para serem vendidos como forma de reparação de uma dívida não paga. Dentro disto, vemos que o fardo de uma dívida avassalada é um grande problema social que se instalou no país e mesmo que muitos não recorram a credores, podemos destacar que a dívida se tornou a principal causa de suicidio na Coreia do Sul.
O jornalista Frédéric Ojardias (2021), após viver por 16 anos na Coreia do Sul, afirma que é muito fácil endividar-se na Coreia do Sul, segundo o jornalista, os dados podem afirmar isso. Frédéric Ojardias, também destaca a inexistência de um sistema de seguro desemprego que venha suprir as famílias em momentos de necessidades, além disso, as condições de trabalho também são precárias. O personagem Ali Abdul, na série mostra um pouco da vivência trabalhista Sul Coreana, mesmo sendo um imigrante, já que é possível ver que alguns de seus colegas são nativos do país e também vivenciam males semelhantes.
Não o bastante, Ali Abdul, por ser um imigrante sofre com o falho sistema de emigração Sul Coreano, já que seu visto depende unicamente de seu emprego, Em Round 6 é possível perceber seu contratante tirando vantagem disso, ao se negar a pagar o salário de Ali. Além disso, muitos desses trabalhos nem chegam a ser declarados e em caso de acidentes os trabalhadores se veem sem qualquer assistência médica, já que não possuem plano de saúde.
O medo constante faz com que muitos imigrantes peçam demissão e acabem vivendo de forma clandestina no país. Em 2019, cerca de 350.000 pessoas viviam de forma ilegal na Coreia do Sul, de acordo com o Ministério da Justiça do país. Em 2019, ONGs de direitos humanos denunciam o comportamento das autoridades sul-coreanas em relação às crianças e bebês de residentes clandestinos no país. De acordo com revelações do site Korea Exposé (2019), as crianças eram mandadas para prisão de adultos sem qualquer assistência sanitária.
Jogadores, trabalhadores e os Vips.
De forma geral, vemos que os jogos de Round 6 giram em torno da crise financeira enfrentada pelos participantes, por outro lado, vemos também, que a essência da série é o dinheiro, tanto em sua falta, quanto em sua abundância, já que ambos os lados movimentam o jogo. A necessidade de possuí-lo, ganhá-lo ou até mesmo a necessidade de fazer parte do sistema que movimenta a essência do dinheiro em uma parábola de uma sociedade capitalista fracassada, a série nos leva a questionar a sociedade a qual estamos inseridos e a busca implacável pela oportunidade de possuir uma vida segura, por meio dos benefícios oferecidos pelo dinheiro.
Sobre essa perspectiva, para o filósofo Karl Marx (1844), O dinheiro é a essência do ser humano e também o responsável por aliená-lo, visto que sua “auri sacra fames “ (maldita ganância do ouro), o submete a uma vida medíocre e alienada pela classe superior que detém os meios de recursos.
Em Round 6, no episódio piloto, podemos ver claramente a representativa das ideias de Marx. A cláusula final do formulário de participação concede a opção de finalizar o jogo caso seja da vontade da maioria dos participantes, dando a ideia de que o poder está sobre as mãos dos jogadores, entretanto, como Mi-nyeo e outros participantes pontuam, eles já estão mortos de qualquer forma e que dentro do jogo pelo menos existe a possibilidade de uma vida “melhor”. Em outras palavras, a participante afirma que, só se é garantido uma pequena porcentagem de segurança a quem está inserido na estrutura de classe do sistema.
Dentro da série, essa estrutura é dividida de forma semelhante ao do conceito desenvolvido por Marx (1867), que impera até os dias de hoje, onde a estratificação social movimenta a separação em decorrência do capitalismo. Desse modo, temos os jogadores que representa a classe dos trabalhadores em busca dos dinheiros; os trabalhadores, soldados e gerentes de macacão vermelho, que apesar de estarem em uma posição mais elevada que os jogadores ainda estão inseridos na classe proletária, visto que, seu “poder” somente é garantido para atender a necessidade do próprio sistema e que fora isto eles são tão dispensáveis quanto aos jogadores.
Isso fica claro em dois momentos, o primeiro quando um trabalhador se torna desnecessário ou descumpre uma regra o líder do jogo o extermina. Em um segundo momento, um VIP ameaça matar um serviçal caso ele não remova sua máscara, embora no primeiro momento tenha ficado claro que manter a identidade secreta seja a principal regra que garante a vida dos trabalhadores.
Por último, temos a classe dominante, representada pelos VIPs, que em maioria é representada por homens brancos ocidentais. Além de patrocinar o jogo por meio de apostas, eles também instigam a disputa entre os jogadores de forma semelhante ao modelo capitalista onde a vida é colocada como uma espécie de corrida onde somente o melhor deve sair bem-sucedido. Com os rostos cobertos garantindo o anonimato de suas atrocidades contra os jogadores, vemos novamente uma representatividade do mundo real, onde a elite dominante pratica a desigualdade social utilizando discursos repetitivos de um mundo mais desenvolvido e globalizado para camuflar suas reais intenções em garantir apenas seus interesses próprios.
CONCLUSÃO
Em virtude dos argumentos apresentados é possível perceber que apesar da Coreia do Sul servir de exemplo de desenvolvimento econômico à comunidade internacional, ela está longe de ser um exemplo a ser seguido, no que se diz respeito à igualdade socioeconômica. Visto que, não podemos considerar um país desenvolvido quanto apenas uma pequena parte da população se beneficia do seu desenvolvimento. Diante desse cenário, Round 6, critica de forma mordaz a realidade contemporânea que vivemos, dando foco na sociedade Sul Coreana, que é regida pelo sistema capitalista, assim como grande parte do mundo.
Ademais, se afastando das metáforas, Round 6 apresenta de forma literal a vida de muitos cidadãos Sul Coreanos, que lutam diariamente por uma vida melhor, com condições de empregos e saudades qualidade em um Estado que prioriza a segurança dos grandes grupos familiares que lideram o sistema econômico do país, mesmo estando cercados de escândalos corruptos, enquanto o índice de famílias em Extrema pobreza se multiplica em larga escala.
REFERÊNCIAS
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