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Talibã: A reascensão do grupo, a questão feminina e o intervencionismo estadunidense.




Mulher afegãs - REUTERS/Omar Sobhan


Resumo

O presente artigo narra a eclosão das influências do regime violento e autoritário do Talibã, grupo fundamentalista sunita fundado por Mohammed Omar em 1994 no cenário da Guerra Civil Afegã.

A organização, inicialmente com o apoio popular, tomou o controle do Afeganistão durante 1996 a 2001, com o objetivo de impor, tiranamente, a sua visão intrínseca da Sharia, a lei islâmica. Os ataques terroristas em 11 de setembro de 2001 foi o estopim para o surgimento de uma coalizão liderada pelos Estados Unidos da América (EUA), no intuito de destituir o Talibã do poder, e dessa forma, garantir o encerramento do regime islamita com a invasão de tropas estadunidenses no Afeganistão.

Todavia, em 2021, a reascensão do movimento Talibã faz-se presente dada a retirada de tropas estadunidenses no território afegão, o que torna pertinente a abertura de uma discussão acerca da opressão sob o corpo feminino durante o governo do movimento nacionalista islâmico no Afeganistão.

Por fim, o artigo apresenta as circunstâncias nas quais as mulheres afegãs estão subordinadas durante este novo regime do Talibã.


Palavras-chaves: Talibã, Afeganistão, sharia, mulheres, URSS, EUA, Mujahidins e burca.



Afeganistão Pré-Talibã


Para compreender o cenário geopolítico acerca do Talibã é necessário entender a cronologia do Afeganistão a partir da ascensão de poder do aliado soviético, Partido Democrático do Povo Afegão (PDPA), no país.

Em 1973, Dahoud Khan declarou-se presidente do Afeganistão e deu início à república no território. Até 1977, Khan firmou uma relação de apoio com comunistas soviéticos para fundar a modernização no Estado. Todavia, perante a pré-revolução iraniana, os EUA gozavam de plena influência no Irã. Isto posto, o presidente desvencilhou da URSS e adotou novas políticas para obter pacto com o ocidente.

Em 1979, no governo do PDPA, a URSS posicionou tropas no Afeganistão por causa de três fatores: instabilidade da conjuntura política, temor da revolução iraniana pautada na teocracia e preocupação a respeito ao apoio paquistanês para grupos religiosos afegãos. Ademais, o ato também tinha finalidade de combater as ameaças islamitas e milícias islâmicas que poderiam ganhar notoriedade no sistema político da Ásia Central. Consequentemente, a jihad tomou forma e a resistência dos Mujahidin se fortaleceu.

A partir do momento em que o partido democrático estabelece seu poder no Afeganistão, os Mujahidins entram em cena com o objetivo de resistir às ideologias e às medidas do novo regime, o qual estabeleceu mudanças radicais na posse de terras e no sistema educacional permitindo a educação para as mulheres e a participação de pessoas do sexo feminino em âmbitos não tradicionais.

No episódio da Guerra Fria, os EUA em busca de enfraquecer o poderio da URSS financiou por intermédio da Agência Central de Inteligência (CIA) grupos rebeldes afegãos e afegãos-árabes com dinheiro, informações secretas, armamento e treinamento. O apoio se concretizou clandestinamente até 1986. A luta pelo enfraquecimento da influência soviética não se desenvolveu apenas com a atuação dos norte-americanos, os paquistaneses juntamente aos sauditas prestavam aos Mujahidins apoio político, militar e econômico na tentativa de impedir as ações soviéticas dentro do Afeganistão.

A partir de 1986, os EUA aumentaram o investimento bélico para os Mujahidin. Pouco tempo depois, em 1988, foi necessário os Acordos de Genebra, que garantiu a retirada de tropas soviéticas do local no ano seguinte. Após dois anos, a URSS declarou fim total do apoio ao partido democrático, o qual renunciou em 1992 após uma guerra civil.

Defronte da circunstância da retirada de tropas soviéticas, o inimigo em comum das etnias que compunham os Mujahidins era inexistente. Dessa forma, assim como ocorre em todos os grupos, as diferenças entre eles se tornaram evidentes destruindo a organização do grupo. Brigas, saques, aspirações de poder e cenário de guerra permitiram o sentimento desalento do povo afegão e o engrandecimento do Talibã.



Formação do Talibã


O Talibã nasce como uma esperança de paz para um povo cansado de guerra. Dessa forma, a história do grupo formado majoritariamente por pashtuns muçulmanos sunitas inicia-se em meados do século XX, quando as áreas pashtuns contemplaram a instabilidade do quadro político afegão.

O povo islamita em questão se desenvolveu primeiramente em campos de refugiados do Paquistão e tinha como referência o mestre Muhammed Omar. A formação primária sob os ensinamentos de Omar foi a fonte do fundamentalismo religioso do grupo, o qual justifica o ultraconservadorismo político e social a partir da interpretação da corrente jurídica Islã, a sharia. Para os estudantes, o grupo Mujahidin não alcançou a eficácia de aplicar a lei e a meta de determinar um Estado islâmico no Afeganistão. Em razão disso, o propósito inicial do Talibã era de derrubar a influência Mujahidin.

Os atos militares dos guerrilheiros é um dos maiores exemplos sobre a arte da guerra, uma vez que concluiu velozes avanços militares por intermédio de estratégias táticas bem estruturadas. Já em 1995, metade do Afeganistão estava sob controle do Talibã, incluindo a capital do país, Cabul. Dois anos depois, o movimento fundamentalista controlava cerca de 90% do Afeganistão.

Nascido no cenário de guerra, que tornou possível que o espectro do medo, da tristeza, da angústia e da falta de esperança rondasse sobre o povo afegão, o Talibã, inicialmente, recebeu apoio da população do país e da comunidade internacional, principalmente do Paquistão, que visava interesses produtivos no Estado afegão, e por isso, transformou os estudantes em cidadãos fortemente armados. No entanto, em razão da rigidez encontrada na interpretação da lei de origem islâmica, os nacionalistas perderam todo o apoio de forma gradual, tornando-se uma pauta considerada perigosa no quadro da geopolítica internacional e regional. Durante o período em que manteve áreas centralizadas sob controle, o grupo baniu entretenimento (televisão, esportes, cassete e música), deteriorou direito das mulheres, apoiou Osama Bin-Laden e líderes da Al-Qaeda, aplicou pena de morte e outras formas violentas de punição.

A política intervencionista estadunidense resultou no atentado às Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001. O primeiro ataque direto aos EUA foi o ponto inicial para a formação do establishment estadunidense, uma vez que o pretexto fora utilizado como justificativa para a invasão dos EUA e da OTAN no Afeganistão que não possuía resistência. Com o apoio da Organização das Nações Unidas (ONU), a coalizão realizada entre os EUA e as equipes contra-Talibã derrubou o grupo fundamentalista do poder em 2002. Entretanto, não o extinguiu. Neste ano, 2021, em decorrência dos gastos da ocupação, a retirada de tropas propiciou a conjuntura ideal para a reascensão do movimento islamita, assegurando a destruição da presidência de Ashraf Ghani, que resultou a rápida tomada de território após 20 anos de combate entre forças militares norte-americanas e do Afeganistão contra o regime Talibã.



Realidade das mulheres sob o regime Talibã


Conforme ocorre o avanço dos fundamentalistas, as mulheres afegãs encaram medidas preocupantes. Por mais que a violência e o ultraconservadorismo perpetuados pelo Talibã alertem a preocupação de organismos internacionais, o governo provisório não se depara com a pressão internacional e a resistência de forças afegãs em prol do direito das mulheres. Dessa forma, o atual momento traz consigo memórias catastróficas do primeiro governo Talibã e efeitos da aplicação da leitura violenta da teoria islâmica jurídica.

Durante o período de 1996 a 2001, algumas ações foram impostas às afegãs como mecanismo de opressão vinculado ao patriarcado. A partir da interpretação da sharia, o governo proibiu mulheres do acesso à educação, tanto em escolas, como em instituições de ensino superior. O trabalho fora do ambiente doméstico, assim como o direito de locomoção sem a supervisão de uma pessoa do sexo masculino, também compusera as restrições para as residentes de áreas administradas pelo Talibã. Uma vez que tais imposições fossem descumpridas, a morte, o apedrejamento e as amputações eram possíveis consequências em forma de punições.

Divisões entre a defesa pública dos ideais de viés religiosos e a tentativa de venda de imagem “modernizada” e “moderada” para a comunidade internacional, ao interagir com a imprensa os talibãs se contradizem nas falas sobre os pilares do governo que está se desenvolvendo. A título de exemplo, em 16 de agosto de 2021, Suhail Shaheen disse na entrevista à CNN que o Talibã visa estabelecer uma governança inclusiva, principalmente às mulheres, contudo, três dias depois, Waheedullah Hashimi, outro representante do movimento que se encontra no poder, declarou que as leis aplicadas futuramente serão parecidas com as que integravam o sistema político do Afeganistão durante 1996-2002.

O retorno do grupo fundamentalista islâmico ao poder no Afeganistão, duas décadas depois de ter sido paralisado por uma invasão de coalizão militar internacional, transporta grande parte dos cargos governamentais ocupados pela velha guarda masculina e o Ministério da Promoção da Virtude e da Prevenção do Vício (responsável pela retirada de direitos sociais e econômicos de cidadãs).

No período de menos de um mês após o Talibã tomar o poder do Afeganistão, é visível a retirada de séries de medidas sociais conquistadas por mulheres afegãs. Mediante a um decreto informal, a comissão cultural do Talibã alegou que as mulheres não poderão participar de esportes os quais deixem o corpo aparente. O ministro de Ensino Superior, Abdul Baqui Haqqani, mostrou que o posicionamento da regência superior está alinhado a exclusão feminina, ao afirmar que as mulheres, diferente do governo Talibã anterior, terão permissão para estudar em universidades, porém, em classes separadas das que contém homens. Ademais, até então, o Talibã retomou uma prática antiga ao ordenar que mulheres entre 15 e 45 anos fossem submetidas à escravidão sexual ao ser entregues para guerrilheiros como objeto de patrimônio e consolo.

No primeiro regime, a capital Cabul foi o principal palco da implementação da lei. Embora as cidades do interior do Afeganistão foram regidas pela interpretação islâmica, a capital do país presenciou-a com maior intensidade. Seguindo o mesmo cenário duas décadas depois, Cabul recebeu no início de setembro de 2021 uma grande quantidade de mulheres protestantes a favor da legitimidade de seus direitos, liberdade e democracia. No entanto, o governo que supostamente estava adotando medidas de inclusão feminina, dispersou-as com gás lacrimogêneo, tiros e chicotadas.


Problematização sobre o significado da burca


A partir do momento em que o Talibã reassumiu o poder no Afeganistão, a mídia hegemônica e certos ativistas deram continuidade à divulgação da correlação entre a luta “antiterrorista” e o ato de mulheres muçulmanas utilizarem burca. Diferente do conceito que reduz o uso da burca como vestimenta de opressão, o real significado do objeto se diverge do que é propagado. Durante séculos, o emprego da vestimenta feminina é contextualizado por definições que agregam a representação de tradições, que se fundamentam em ideais de fé, resistência e cultura de comunidades islâmicas do Afeganistão e do Paquistão. Em suma, a veste feminina que cobre todo o corpo detém papel político para as mulheres muçulmanas e, por isso, é necessário abandonar o viés ideológico ocidental e distinguir o material de fé de atos dos talibãs.

Como exemplo, há as mulheres pashtun, que possuem a mesma etnia do Talibã. Em agosto de 2021, o representante do movimento fundamentalista islâmico, Suhail Shaheen, disse que o Talibã não obrigará as mulheres de usar a burca durante o regime embasado na leitura da lei sharia. No entanto, o Talibã não inventou o uso da burca. Anteriormente a formação do grupo, as mulheres de origem pashtun já utilizavam a burca como vestimenta de cobertura quando frequentavam as ruas. Além disso, é importante ressaltar que no episódio em que os EUA e a OTAN estavam dominando o Afeganistão, as afegãs não deixaram de usar a vestimenta. Tal fato se opõe a ideia ocidental sobre a burca ser não apenas um, mas o mais significativo instrumento de opressão imposto às mulheres sob o governo fundamentalista islâmico e o dogma islã.



Conclusão


Há anos, a mídia e o senso comum vinculado a visão ocidental contribuem com a disseminação de petições e pseudonotícias acerca da defesa da mulher muçulmana. Mais uma vez, o ocidente explora uma catástrofe de conjuntura política para propagar tropos islamofóbicos, como ocorreu para justificar a invasão estadunidense do Afeganistão há duas décadas com “Guerra ao Terror" a partir de 11 de setembro de 2001.

É inegável a permanência do “fardo do homem branco”, originado durante o início do imperialismo norte-americano, para propagar o sentimento estadunidense de salvação de direito das mulheres afegãs. Séculos depois, a imprensa norte-americana é a principal divulgadora da ideia de que tradições religiosas e culturais ocidentais são superiores as encontradas em territórios muçulmanos islâmicos e, por isso, as mulheres muçulmanas devem ser libertas da doutrina acerca da burca.



Referências Bibliográficas


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Talibã interrompe protesto de mulheres em Cabul. DW, 2021. Disponível em: <https://m.dw.com/pt-br/talib%C3%A3-interrompe-protesto-de-mulheres-em-cabul/a-59087416?maca=pt-BR-Twitter-sharing>. Acesso em: 4 de setembro de 2021.


Talibã: Mulheres poderão frequentar as universidades, mas em salas separadas. Brasil 360, 2021. Disponível em: <https://www.poder360.com.br/internacional/taliba-mulheres-poderao-frequentar-as-universidades-mas-em-salas-separadas/>. Acesso em: 2 de setembro de 2021.



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