Paris, a capital da literatura latino-americana
- João Vitor de Souza Santos
- 28 de set. de 2021
- 5 min de leitura

Resumo
Diversos países latino-americanos caíram em ditaduras no século XX com regimes que perseguiam e censuravam pensadores que tinham repúdio pelas tiranias. Muitos escritores foram obrigados a buscarem um refúgio seguro, e o local mais escolhido pelos intelectuais da América Latina foi Paris. Esse ponto de encontro na capital francesa fez criar uma rede de romancistas, cronistas, contistas e poetas que divulgariam e mudariam para sempre a literatura latino-americana. Paris foi fundamental para que as obras da América Latina vivessem o famoso “Boom latino-americano”, com uma divulgação mundial de escritores como Gabriel García Marquez, Mario Vargas Llosa, Carlos Fuentes, Julio Cortáza e muitos outros.
A capacidade da literatura
A literatura tem a capacidade de mudar o curso da história, e consequentemente, mudar também as relações entre as nações. Foi assim na antiguidade quando Alexandre Magno leu o poema épico “Ilíada” de Homero. Alexandre via a si mesmo dentro do poema, com isso, utilizou a epopeia para responder diversas questões pessoais e militares. Alexandre teve um grande impacto mundial, sobretudo pela conquista do mundo até então conhecido. Essa conquista helenizou os mais diversos povos, levando para eles a mais alta cultura grega. A consequência do período helenístico está presente até os nossos dias. Política, literatura, direito, cultura, ciências e democracia, tudo isso que vivemos diariamente é herdado dos gregos. Portanto, podemos dizer que somos descendentes da Grécia antiga, isso tudo graças ao helenismo, que sem Homero, simplesmente não existiria.
Além de influenciar líderes a mudarem o curso da história e influenciarem para sempre o mundo, a literatura também tem o poder de derrubar impérios, governos e leis, pois ela consegue entrar no nosso imaginário e difundir valores, como a liberdade e o repúdio pelas tiranias. Foi assim com “Memórias de um caçador”, um livro de contos do escritor do leste europeu Ivan Turguêniev. Essa obra foi fundamental para difundir na consciência do povo russo valores que remetem à emancipação, por isso o livro foi essencial para projetos que tinham como objetivo o fim da servidão no país. Justamente por ter causado tanto impacto e comoção nacional, “Memórias de Um Caçador” rendeu ao autor uma prisão domiciliar em 1852, pois a obra havia enraivecido o governo tsarista.
Os poderes de recuperar a história
Seria mais difícil compreender a Rússia do século XIX sem Liev Tolstói, já que o autor descreve com rigor a sociedade do seu tempo. Desde as vestimentas, o espírito, os gostos, a visão de sucesso e as castas sociais, todo esse arcabouço cultural é encontrado em seus contos, novelas e romances, como no livro "Ressurreição", que além de conter esse panorama cultural, ainda descreve como era o judiciário russo da época, instituição que era muito criticada por Tolstói.
É também mais simples compreender a era vitoriana na Inglaterra do século XIX com as obras de Charles Dickens. “Uma Canção de Natal”, por exemplo, faz uma radiografia sobre o espírito das pessoas naquele momento. A Inglaterra vivia a Revolução Industrial, fábricas e mais fábricas surgindo, uma quantidade enorme de trabalhadores saindo dos campos e migrando para as cidades em busca de recursos para sobreviver, com isso, aceitavam serviços que eram desempenhados em péssimas condições, mal remunerados, com muitas horas de trabalho e pouca segurança. Com a aristocracia buscando fazer mais dinheiro, datas importantes e momentos de simplicidade e confraternização como o Natal foram ficando cada vez mais difíceis de acontecer. Dickens publicou “Uma Canção de Natal” em dezembro de 1843 com o objetivo de resgatar o espírito natalino, objetivo conquistado com sucesso e maestria. Após a publicação dessa pequena novela, o natal no ocidente nunca mais foi comemorado da mesma forma que era até 1842.
Paris, a casa dos escritores latino-americanos
A contribuição da Europa para o mundo das letras vai além dos escritos europeus, pois o velho continente foi lar de muitos autores latino-americanos que encontraram nas ruas de Paris o abrigo necessário para escrever as suas obras. Foi assim com Gabriel García Marquez, Julio Cortázar, Mario Vargas Llosa e muitos outros.
García Marquez narrará em uma crônica chamada “De Paris, com amor”, publicada no jornal El País, em Madri no ano de 1982 como foi sua chegada na capital francesa, fato que ocorreu em 1955. Na metade do século XX, grande parte da América Latina estava vivendo sob a tirania de diversos ditadores, como por exemplo a República Dominicana com o general Rafael Leónidas Trujillo, Cuba com Fulgencio Batista e Nicarágua com Anastasio Somoza. Para sobreviver, diversos escritores, políticos, poetas, jornalistas, romancistas e professores buscavam refúgio na Europa, sobretudo em Paris. A quantidade era tamanha que Garcia Marquez revela que descobriu a América Latina na Europa, afinal, era em Paris que diversos latino-americanos viviam juntos nos mesmos bairros e frequentavam os mesmos lugares.
Júlio Cortázar, escritor argentino que também buscou proteção em Paris, teve um papel essencial na divulgação da literatura latino-americana. Seus contos conquistaram o mundo das letras. Cortázar não só morou na França, mas adquiriu nacionalidade francesa em 1981. Em um desses cafés lotados de colombianos, peruanos, brasileiros, chilenos e argentinos, Cortázar conheceu García Marquez. Os dois nutriram uma forte amizade até a morte de Cortázar.
Mario Vargas Llosa mudou-se para a França em 1957. Viver em Paris fez total diferença em sua obra, pois foi lá que o autor conheceu a literatura latino-americana. Essa troca cultural só foi possível acontecer em Paris, pois foi naquele momento que eles frequentavam os mesmos eventos, teatros, conferências, cinemas e cafés. Antes de Paris, os latino-americanos não conheciam a literatura que estava sendo produzida na própria América Latina. Um escritor peruano, por exemplo, não sabia o que estava sendo publicado na Colômbia. Portanto, a América Latina e todo seu esplendor cultural foi descoberto na Europa.
Essa geração de escritores que vai muito além dos já aqui citados mudaram a literatura ocidental e consequentemente, formaram o pensamento de uma geração. “Cem Anos de Solidão”, um romance publicado em 1967 por Gabriel García Marquez, por exemplo, elucida a condição do latino-americano, uma condição solitária, longe de todos os progressos, longe das tecnologias produzidas nos países de primeiro mundo. Uma condição também de opressão pelo próprio governo. A partir do momento que essas obras que buscam explicar a América Latina são publicadas, vão influenciar decisivamente o pensamento de uma geração que nos anos posteriores iriam ocupar cargos importantes, entrar na política, na área acadêmica e nas redações de jornais.
Conclusão
É difícil mensurar o tamanho do impacto das obras latino-americanas no mundo, sobretudo no ocidente. Afinal, como defende o historiador Thomas Carlyle, a literatura é a ferramenta mais poderosa e mais invisível. Ela não pode invadir um país com tanques de guerra, não pode organizar revoluções que vão derrubar governos e ditaduras, mas apenas a literatura tem o poder de colocar as ideias nas cabeças das pessoas que irão fazer revoluções, que vão governar e que influenciarão uma sociedade.
O mais impressionante, é que o seu poder não é finito, como foi o poder de muitos tiranos. Quantos impérios, governos, ditaduras, democracias, revoluções já passaram desde que Homero foi escrito pela primeira vez por um escriba? E o mais impressionante, Homero é fundamental e continua influenciando uma gama de pensadores. “Cem Anos de Solidão” é um exemplo disso, foi publicado no mesmo momento que a América Latina estava repleta de ditaduras. Quase todos esses regimes tiranos foram derrubados, mas “Cem Anos de Solidão” continua vivo e inspira novos pensadores. E essa forte influência literária dos latino-americanos no século XX não seria possível acontecer sem o encontro desses escritores e pensadores em Paris.
Referências Bibliográficas
DICKENS, Charles. “Uma canção de Natal”. Editora Schwarcz. 1°edição. São Paulo. 2019.
MARTIN, Puchner. “O Mundo da Escrita”. Editora Schwarcz. 1° edição. São Paulo. 2019.
TURGUÊNIEV, Ivan. “Memórias de um Caçador”. Editora 34. 2° edição. São Paulo. 2017.
MARQUEZ, Gabriel García. “O Escândalo do Século”. Editora Record. 2° edição. Rio de Janeiro. 2020.
MARQUEZ, Gabriel García. “Da Europa e Da América”. Editora Record. 1° edição. Rio de Janeiro. 2006.
MARQUEZ, Gabriel García. “Cem Anos de Solidão”. Editora Record. 116° edição. Rio de Janeiro. 2020.
TOLSTÓI, Liev. “Ressureição”. Editora Schwarcz S.A. 1° edição. São Paulo. 2020.
LLOSA, Mario Vargas. “Dicionário Amoroso da América Latina. Editora Ediouro Publicações.1° edição. Rio de Janeiro. 2006.
CARPEAUX, Otto Maria. “História da Literatura Ocidental, volume IV”. Editora do Senado. 3° Edição. Brasília. 2008.
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