A atual Crise Política vivenciada pelo Mali: Dois Golpes de Estado em apenas Nove Meses
- Lara Diniz Araujo
- 29 de jun. de 2021
- 8 min de leitura

Dennis, Nipah. 2021
A crise política que vem assolando a República do Mali nos últimos meses possui antecedentes históricos importantes para entender a atual situação do país. Entre eles, a complexa e duradoura Guerra Civil do Mali, que causa uma enorme insegurança na população civil, além dos péssimos índices de estagnação econômica e a decadência das mais diversas áreas institucionais, educacionais, sanitárias, sociais, entre outros.
Com isso, em Junho de 2020 a população resolveu ir às ruas protestar, contra o então presidente Ibrahim Boubacar Keïta, liderados pela coalizão Movimento 5 de Junho-Agrupamento de Forças Patrióticas, o que acabou resultando em um golpe de Estado em Agosto de 2020 pelos militares, liderados por Assimi Goïta. O golpe, no entanto, foi aplaudido e aceito pela grande maioria do povo do Mali.
Contudo, o presidente e o primeiro-ministro interino, respectivamente Bah Ndaw e Moctar Ouane, instituídos pelos militares insurgentes, permaneceram no cargo por apenas nove meses, já que novamente houve um golpe de Estado liderado por Goïta em Maio de 2021. Atualmente, Goïta é o presidente interino do Mali e garante que seu governo de transição democrática ocorrerá somente até 2022, ano em que haverá eleições.
A República do Mali, ou Mali ka Fasojamana, localizado na África Ocidental e delimitado territorialmente por sete países, vem passando por uma grave crise política nos últimos meses. Em agosto de 2020, o território sofreu um golpe de Estado liderado pelos coronéis Assimi Goïta e Ismaël Wagué, juntamente com um grupo de militares insurgentes. Meses depois, o governo transitório formado pelos sublevados, o qual estava planejado para se encerrar em 18 meses, acabou findado mais cedo pois sofreu um golpe em Maio deste ano, liderado pelo próprio vice-presidente. Daí em diante, quem se encontra no poder atualmente é Goïta, como Presidente interino do Mali, e Choguel Kokalla Maïga, no cargo de Primeiro-Ministro. Assim, nesse contexto de tantas instabilidades políticas no Mali, é necessário entender os antecedentes e as causas dessa tensa situação vivida hoje pelo país.
Pode-se dizer que a atual crise política vivenciada pelo Mali não é motivada unicamente por acontecimentos recentes, mas também por circunstâncias que se iniciaram já há alguns anos. Dentre esses diversos motivos, a Guerra Civil do Mali, iniciada em 2012 e que perdura até hoje, sem dúvida é um deles. O conflito atualmente é travado primordialmente por forças do governo maliano, coalizões separatistas de grupos da etnia Tuaregues e por grupos extremistas islâmicos. Inicialmente, a guerra tinha um caráter mais voltado ao separatismo, pois os tuaregues – povo que foi historicamente negligenciado e marginalizado pelo governo do Mali – buscavam sua independência do norte do país, região onde os mesmos se localizavam.
Contudo, pouco tempo depois do início da disputa, começaram a surgir ataques recorrentes de grupos extremistas islâmicos no país, os quais desejavam (e ainda desejam) estabelecer seus próprios governos e leis na região, contribuindo para que violência no território aumentasse enormemente. Ademais, essa grande onda de violência advinda de diversos atores – do próprio governo do Mali, de coalizões de grupos tuaregues e de grupos extremistas islâmicos – ocasionaram o surgimento de milícias de autodefesa, provocando hostilidades ainda maiores entre os diversos grupos étnicos que vivem no território maliano, junto ao aumento exponencial da violência intercomunitária desde 2016. Desse modo, todos esses fatores em conjunto colaboram para que exista uma enorme insegurança no Mali. Para mais, os altos índices de pobreza existentes por causa da estagnação econômica, e a deterioração nas áreas da saúde, educação, e das próprias instituições do Estado são outros fatores que explicam a difícil situação que o país vem passando nos últimos anos.
Porém, o ápice dessa instabilidade política começou, em especial, com os protestos iniciados em Junho de 2020 em Bamako, capital do Mali, e que logo se alastraram por todo o país. Esses protestos, os quais foram chamados de “Movimento 5 de Junho” (M5), exigiam a renúncia do então presidente Ibrahim Boubacar Keïta por uma série de fatores: a incapacidade de lidar com a crise geral que o país vêm passando; a dificuldade de conter a enorme violência presente no território; as várias denúncias de corrupção e fraude eleitoral nos anos de seu governo; a má capacidade de gestão da pandemia de COVID-19; a culpa pelo sequestro do principal líder da oposição do governo, Soumaïla Cissé; entre outros. O M5 tornou-se tão forte no Mali que logo o Agrupamento de Forças Patrióticas (RFP) uniu-se ao movimento, e juntos formaram a coalizão M5-RFP de oposição ao governo. Assim, durante aproximadamente dois meses, milhares de malianos foram continuamente às ruas pedir a demissão de seu líder, em manifestações que deixaram dezenas de pessoas feridas e até mesmo mortas em confrontos com as forças do governo.
Até que em 18 de agosto de 2020, uma junta de militares insurgentes, liderado por Assimi Goïta e Ismaël Wagué, consegue afinal derrubar o governo através de um golpe de Estado. O presidente Keïta, o primeiro-ministro Boubou Cissé, e diversas autoridades do alto escalão do governo foram detidos pelos sublevados na base militar de Kati, a poucos quilômetros de Bamako. À noite, em um pronunciamento na televisão, Keïta foi forçado a renunciar seu cargo, além de anunciar também a dissolução da Assembleia Nacional. No mesmo discurso, Keïta também disse: “Não desejo que se derrame mais sangue para me manter no poder”.
Com base nisso, é interessante notar as divergências de opiniões no tocante ao golpe. A maioria da população civil clamou e celebrou a intervenção feita pelos militares, tanto que Nouhoum Togo, porta voz do M5-RFP, declarou à Reuters que o episódio do dia 18 “não é um golpe militar, mas uma insurreição popular”. Por outro lado, as organizações internacionais, assim como grande parte dos países ocidentais, se posicionaram firmemente contra o golpe. António Guterres, secretário-geral da ONU, condenou a ação dos militares e pediu que os mesmos libertassem Keïta e Cissé de maneira “imediata e incondicional”. Moussa Faki Mahamat, presidente da União Africana, também desaprovou o episódio e pediu que os sublevados evitassem o uso de força. A Comunidade Econômica de Estados da África Ocidental (ECOWAS), igualmente aos anteriores, criticou a ocorrência do golpe e insistiu que os militares retornassem aos quartéis, além de assegurar a defesa à ordem constitucional do Mali.
Nesse contexto, é importante mencionar que Keïta era um bom aliado do Ocidente e tinha uma ótima aceitação de grande parte das organizações internacionais e de vários países, especialmente da França. Um claro exemplo disso, é que o país comanda a Operação Barkhane, responsável por perseguir e combater forças extremistas islâmicas na região do Sahel, e que conta com a colaboração de diversos governos africanos, incluindo o maliano. Porém, a retirada forçada de Keïta do poder traz consequências significativas para todo o ambiente de conflitos geopolíticos existentes na área, resultando em maiores instabilidades e problemas a esses agentes. Logo, é evidente que esses atores externos não desejam mudanças na ordem do Mali, mas sim querem conservar as influências e acordos que favoreçam seus próprios interesses na região, ao invés de pensar nas dificuldades que o povo maliano vem passando nos últimos anos.
Após o golpe de 18 de Agosto, a junta de militares insurgentes formou um novo governo, nomeando Bah Ndaw para o cargo de presidente interino e Moctar Ouane como primeiro-ministro interino, e garantiram que essa gestão transitória duraria apenas dezoito meses. Contudo, mesmo com a nomeação oficial de dois civis nos maiores cargos de dirigentes do país, fato que só ocorreu por causa da pressão internacional posta sob os sublevados, foram os militares que realmente assumiram os principais cargos do gabinete maliano. Pelo menos quatro ministérios estratégicos, o de Defesa, Segurança, Administração Territorial e de Reconciliação Nacional, são ocupados integralmente por militares. Para mais, quem se tornou o verdadeiro líder do Mali foi Goïta, embora oficialmente o mesmo fosse apenas o vice-presidente interino do país, cargo este que não existia até Agosto de 2020. Assim, os militares permaneceram exercendo uma enorme influência no governo maliano, tomando as decisões centrais e controlando totalmente o processo transitório pelo qual passava o país.
Esse poder desmedido dos militares, porém, inicialmente não agradou muito os apoiadores do golpe de Estado, o que começou a gerar alguns dilemas à nova gestão do Mali. O próprio M5-RFP pediu que o governo de transição fosse alterado por um mais legítimo e que priorizasse a nomeação de civis. Todavia, os questionamentos feitos pela população civil com relação ao novo governo não vingaram por muito tempo, já que logo o apoio aos sublevados novamente se tornou bastante forte, dando suporte às ações ditatoriais, e muitas até inconstitucionais, da junta.
Nesse sentido, o principal impulso causador do segundo golpe de Estado no Mali, ocorrido apenas nove meses depois do primeiro, foi a remodelação do gabinete do governo feita por Ndaw e Ouane em 24 de Maio de 2021. As mudanças propostas pelas autoridades incluíam a composição de um novo governo, bem como a demissão de dois membros da junta militar que estavam no poder na época. Porém, o projeto foi completamente rechaçado por Goïta e seus apoiadores, e por isso o vice-presidente novamente decidiu realizar um golpe contra o governo, o qual desta vez foi definido por ele próprio e seus aliados. Assim, horas depois da circulação da proposta de reforma, Goïta anunciou a destituição e a detenção de seus superiores Bah Ndaw e Moctar Ouane, respectivamente o Presidente e o Primeiro-Ministro interino, assim como Souleymane Doucoure, o Ministro da Defesa do Mali. Segundo o vice, os dirigentes estavam tentando “sabotar a transição” do governo, formando um novo gabinete sem o consentimento do próprio, e que "tal movimento demonstra um claro desejo por parte do Presidente e do primeiro-ministro transitórios de violar a carta transitória”.
As reações da comunidade internacional ao novo golpe não foram muito diferentes das anteriores. António Guterres pediu a “libertação incondicional” dos líderes civis que foram detidos e “calma” aos militares. O Conselho de Segurança da ONU realizou uma reunião de emergência para tratar da situação do Mali no dia 25 de Maio, e afirmou que uma intervenção militar que force o processo de transição democrática no país é inaceitável. Em um comunicado conjunto, a ECOWAS, União Africana (AU), MINUSMA (Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para a Estabilização do Mali), Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, União Europeia (EU) e França condenaram totalmente o golpe.
Agindo de forma mais incisiva, o presidente francês Emmanuel Macron disse que o que ocorreu no território maliano foi um “inaceitável golpe dentro de um golpe”, e suspendeu as operações militares conjuntas com as forças do Mali. Já a AU decidiu, em uma cúpula extraordinária realizada em 30 de Maio, suspender o Mali de sua organização, e a ECOWAS exigiu a nomeação “imediata” de um novo primeiro-ministro civil, além da formação de um governo “inclusivo”.
Poucos dias depois do golpe, Goïta fez um anúncio em que disse que garantiria a continuação do processo de transição democrática proposto em Agosto de 2020, além de confirmar as eleições previstas para 2022 mesmo com a destituição do presidente e do primeiro-ministro. Dias depois, o mesmo foi nomeado presidente interino do Mali pelo Tribunal Constitucional do país, sob a assertiva de que o então vice-presidente iria “conduzir o processo de transição à sua conclusão". Com base nisso, em 7 de Junho Goïta é finalmente empossado presidente interino e escolhe Choguel Kokalla Maïga para o cargo de primeiro-ministro, no qual ambos se encontram hoje. Maïga é um civil, já esteve presente no cenário político do país em diversos momentos e também foi um dos líderes da coalizão M5-RFP.
A partir disso, todos esses acontecimentos complexos dos últimos meses comprovam a enorme instabilidade política vivida no Mali há anos, afetando a população civil de maneira brutal. O número de refugiados malianos que se deslocam em direção aos territórios próximos ao Mali em busca de maior segurança é muito preocupante. Além disso, o próprio povo maliano tem vivido em péssimas condições dentro de seu país nos mais variados âmbitos econômicos, políticos, sociais, educacionais, sanitários, entre outros. Entre disputas tanto internas quanto externas, o próprio governo maliano não se importa realmente com as dificuldades de sua população, e as outras nações assim como as organizações internacionais, da mesma forma não possuem interesses reais em ajudar essas pessoas.
Referências Bibliográficas
Mali é suspenso de organização regional na África após 2º golpe em nove meses. AFP, 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/05/30/mali-e-suspenso-de-organizacao-regional-na-africa-apos-2o-golpe-em-nove-meses.ghtml. Acesso em: 15 mai. 2021.
Mali: Militares dizem que Presidente tentou "sabotar" a transição. AFP, 2021. Disponível em: https://www.dw.com/pt-002/mali-militares-dizem-que-presidente-tentou-sabotar-a-transi%C3%A7%C3%A3o/a-57658165. Acesso em: 15 mai. 2021.
NARANJO, José. Golpe de Estado no Mali força presidente a renunciar após meses de instabilidade. El País, Dacar, 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/internacional/2020-08-19/golpe-de-estado-no-mali-forca-presidente-a-renunciar-apos-meses-de-instabilidade.html. Acesso em: 15 mai. 2021.
PARENTI, Maria Carolina Chiquinatto. O complexo e multifacetado conflito no Mali. Observatório de Conflitos, 2020. Disponível em: https://gedes-unesp.org/o-complexo-e-multifacetado-conflito-no-mali/. Acesso em: 15 mai. 2021.
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