A Cinematografia dos países Africanos: um estudo sobre o cinema identitário e Nollywood.
- Lara Diniz Araujo e Victória Maria Pessoa Raposo
- 7 de out. de 2021
- 10 min de leitura

Nollywood: o lugar onde o cinema de guerrilha prospera
RESUMO
A produção artística durante muitos anos ficou restrita a países desenvolvidos, detentores de recursos, sejam eles técnicos ou financeiros e colonizadores. Hoje, com o maior desenvolvimento das redes de comunicação e com a possibilidade de descobrimento de novas técnicas de produção, países em desenvolvimento podem praticar e expor suas realidades através da arte audiovisual. Assim, esse artigo se propõe a apresentar o novo centro de produções cinematográficos localizado na Nigéria, que por sua vez tem reforçado a sua posição como uma fábrica de filmes.
Palavras-Chave: Produção audiovisual. Cinema africano. Identidade nigeriana.
Introdução
A indústria cinematográfica global possui diversos estilos, modelos e tendências de cinema, produzidos e difundidos em especial por países que detém recursos para produzir suas próprias obras. Um grande exemplo disso é Hollywood, a qual é inegável seu prestígio e reconhecimento em todo o mundo, já que é a mais famosa, abastada e admirada indústria do cinema, principalmente entre os ocidentais.
Contudo, isso não significa que a “sétima arte” exista e seja produzida apenas no Norte Global ou por Estados ricos. Diversos países sul-globais detém uma indústria cinematográfica consolidada, como Bollywood na Índia e Nollywood na Nigéria, a qual esta última será melhor explorada neste artigo.
A Nigéria, uma nação que até o início da década de 90 não tinha salas de cinema, revolucionou a indústria cinematográfica do país por meio da comercialização de fitas e CDs com filmagens simples e produzidas com o intuito de ser uma renda complementar. O que não se sabia é que os filmes fariam muito sucesso entre a população, gerando um rápido desenvolvimento da cultura cinematográfica do país (CULTURA E MERCADO, 2006).
Em vista disso, neste artigo será abordado o surgimento do cinema no continente africano, as principais temáticas abordadas nas primeiras décadas desta cinematografia, as diferenças existentes entre os aspectos cinematográficos das regiões da África, e por fim, o caso notável de Nollywood que vem se destacando cada vez mais na atualidade.
Cinematografia(s) Africana(s)
O cinema foi criado durante o auge da cultura burguesa nos principais centros urbanos europeus com uma tendência realista-naturalista, ocupando e substituindo o lugar da literatura e do teatro como os principais mecanismos de disseminação de discursos hegemônicos ao longo da passagem do século XIX para o XX (TAVARES, 2010). Isso porque, de acordo com Bazin (1991), a “sétima-arte” é um modo de linguagem tal qual outras formas de artes existentes, e consequentemente, o cinema é responsável por construir e iludir tanto ideias quanto pensamentos, bem como manipular a realidade.
Não por acaso, os colonialistas e imperialistas utilizaram-se demasiadamente da indústria cinematográfica como um instrumento de transmissão e perpetuação de ideais como “civilizar é educar” e “evangelizar e civilizar” em suas colônias, justificando assim a exploração e subjugação realizadas no continente africano, disfarçada de “missão civilizadora”. Desse modo, o cinema colonial foi empregado principalmente após a Primeira Guerra Mundial, com o objetivo central de apresentar a sociedade e a cultura ocidental ao mundo “não-civilizado”, e também exaltar as ilusórias conquistas das nações imperiais assim como os falsos benefícios da colonização (CARRIERE, 1995). Como consequência disso, os imperialistas inferiorizaram, alienaram e degradaram as comunidades africanas nos mais diversos aspectos.
Nesse sentido, o surgimento de uma primitiva indústria cinematográfica no continente ocorreu somente após as lutas pela descolonização e as conquistas pela independência destes territórios. Assim, a partir da segunda metade do século XX, especialmente nos anos 1960, os primeiros cineastas africanos lançaram-se à criação de obras cinematográficas “produzidas, dirigidas, fotografadas e editadas por africanos e estreladas por africanos que falassem línguas africanas” (SADOUL, 1973 apud DIAWARA, 1992). Um dos primeiros e mais importantes filmes produzidos integralmente na África foi La Noire de… (1966) - em tradução livre “Garota Negra” - criado pelo escritor, produtor e diretor senegalês Ousmane Sembène. O filme conta a história de Diouana, uma jovem senegalesa sonhadora que se muda para a Riviera Francesa a fim de trabalhar como doméstica para um casal francês branco. Porém, em sua nova moradia ela se depara com o racismo e um forte preconceito, mostrando a dualidade entre a esperança de uma vida melhor fora do país de origem da personagem versus a realidade de uma marginalização sofrida pelos povos africanos na Europa.
Justamente pelo nascimento do cinema nos países africanos ter sido, em sua maioria, uma experiência pós-colonial e pós-emancipatória, muitos dos temas que eram retratados nos primeiros filmes estavam diretamente associados às lutas contra países imperialistas e as consequências originadas a partir da colonização. Assim, o cinema africano passou a ser um mecanismo de militância e desconstrução de concepções racistas e colonialistas, com o intuito de contribuir para a construção e afirmação das identidades nacionais dos povos africanos. Filmes como Mouramani (1953) de Mamadou Toré, Sambizanga (1972) de Sarah Maldoror, e Emitai (1972) de Ousmane Sembène, por exemplo, contestam as ideias coloniais e racistas difundidas pelos imperialistas, além de retratarem as lutas decoloniais contra as opressões realizadas por países colonialistas (MACEDO, 2014).
Assim, as principais tendências produzidas nos longas africanos neste primeiro momento foram: a luta contra o colonialismo, como mencionado anteriormente; os traumas infantis advindos dos processos de independência, como mostrado nos filmes Sarzan (1963) do senegalês Momar Thiam, e Heritage Africa (1988) do ganês Kwaw Ansah; as desilusões do período pós-emancipação, como observado nos filmes Xala (1975) de Ousmane Sembène, Den muso (1975) do maliano Souleymane Cissé, e Mortu Nega (1988) da bissau-guineense Flora Gómez; o êxodo rural e a imigração, como evidenciado no filme Soleil Ô (1970) do mauritano Med Hondo; a situação de injustiça das mulheres, como revelado no filme Finzan (1990) do maliano Cheick Oumar Sissoko; e a oposição entre tradição e modernidade nas sociedades africanas, como evidenciado nos filmes Badou Boy (1970) e Touki Bouki (1973) do senegalês Djibril Diop Mambéty (BOUGHEDIR, 2007).
No entanto, desde o surgimento da cinematografia no continente africano até a atualidade, a maioria dos realizadores dos filmes têm tido diversas dificuldades tanto em produzir quanto em distribuir, interna e externamente, suas obras. Os altos custos de produção, as imensas dificuldades de financiamento e a má distribuição dos longas às populações, geram restrições e obstáculos ao desenvolvimento dos cinemas da maioria dos países africanos (MACEDO, 2014). Pouquíssimos governos possuem políticas cinematográficas ou assistem financeiramente os produtores de obras nacionais, e por isso grande parte dos recursos para a produção dos filmes vem de países e instituições estrangeiras, em especial da Europa. Contudo, estes financiadores tendem a limitar e moldar as temáticas e o formato destes filmes africanos por conta da dependência financeira, como cita Ferid Boughedir:
“O grande entrave do cinema africano é a falta de distribuição suficiente na África. A existência atual desse cinema é muito dependente da Europa, tanto de apoio financeiro como da distribuição em festivais e exibição em televisão. Essa dependência da Europa (e da França, em particular, para os filmes falados em francês) vem resultando, de forma consciente ou não, em cineastas que modelam os seus filmes de acordo com as expectativas dos festivais de cinema franceses e europeus, assim como para o seu público.” (BOUGHEDIR, 2007, p.53)
Para mais, é importante compreender que existem diferenças entre as cinematografias de cada país africano, sendo que estas distinções foram se ampliando pouco a pouco ao passar dos anos, em especial quando se analisa as regiões norte e sul do continente. No momento inicial do cinema na África, realmente havia uma convergência e também várias similaridades entre as temáticas retratadas nos filmes, independentemente dos países. Todavia, este cenário não se encontra da mesma forma atualmente, e cada vez mais os próprios cineastas buscam evitar nomenclaturas que tentem igualar ou homogeneizar os projetos cinematográficos singulares de cada local. Inclusive, hoje utiliza-se com frequência, categorias como África Lusófona, Anglófona e Francófona a fim de caracterizar de maneira mais específica os aspectos cinematográficos de cada região, ainda que estes sejam termos que claramente remetem elementos do período de dominação imperial.
Assim, na região do Maghreb - formado essencialmente por Marrocos, Tunísia e Argélia - os governos locais realizam algumas iniciativas de investimentos em seus cinemas nacionais, ainda que estas medidas sejam poucas e insuficientes. Em vista disso, a cinematografia destes países é considerada mais consolidada e independente. Já a África Ocidental Subsaariana sempre esteve muito dependente dos financiamentos promovidos pela França, o que se deve excepcionalmente ao imperialismo francês e a continuidade de sua influência nesta área. Por isso, os cinemas dos países localizados nesta região encontram-se comumente atrelados às críticas e perspectivas de seu antigo colonizador. (ARMES, 2007)
A partir disso, o surgimento de um novo modelo de filmes, nos anos 1990, é um exemplo que demonstra esta atual pluralidade de cinemas presentes no continente africano. O distanciamento estético entre produções intelectualizadas e o gosto popular por temas cotidianos possibilitou um novo estilo de obras cinematográficas, as quais são produzidas com um baixo orçamento, bem como vêm sendo facilmente distribuídas à população, através de VHS’s e DVD’s. Este fenômeno se tornou bastante presente na Angola, estabelecendo a indústria de Angolywood, a qual explora temas como o consumo de drogas, a violência juvenil e o desenraizamento social, como observado nos filmes O Imigrante (2008) e A guerra do kuduro (2010) do angolano Henrique Narciso ‘Dito’. (MACEDO, 2014)
Entretanto, a Nigéria foi o principal país africano onde este novo fenômeno se tornou realmente impressionante, possibilitando atualmente a constituição da segunda maior indústria cinematográfica do mundo: Nollywood.
Nollywood: a indústria cinematográfica nigeriana
Na década de 90 a Nigéria estava sob o governo militar de Ibrahim Babangida e o cinema nigeriano atual foi criado em uma época de incertezas políticas e em meio a uma crise financeira que assolava o país. A segunda metade do século XX evidenciou as dificuldades econômicas, políticas e sociais características de países em desenvolvimento. A população enfrentava diversas dificuldades, entre elas os altos custos dos aparelhos de televisão e de reprodução de vídeos, restritos aos mais afluentes. Ademais havia dificuldades com os picos de energia em grande parte do território nigeriano, sendo necessário aquisição de gerador reserva para aproveitar os equipamentos eletrônicos (BALOGUN, 2007).
Na metade do século XX a economia nigeriana estava em declínio por causa das constantes desvalorizações monetárias e dos ajustes governamentais. Por esse motivo era custoso encaminhar os recursos para a pós-produção e edição dos filmes ao exterior. Mas isso não impediu que a população demandasse mais produções nacionais no dialeto local, iorubá (BALOGUN, 2007).
Nos anos de seu início, as produções nigerianas receberam financiamento de pessoas notáveis, que tinham interesse no desenvolvimento do cinema nacional. Os esforços foram o combustível para uma maior veemência nas produções, além da constante busca por qualidade de acordo com as necessidades das décadas de 70 e 80 e também com as demandas do público. Esses primeiros anos ficaram marcados como a “era clássica” do cinema nigeriano (OJIESON, 2017).
A conexão estabelecida entre a arte e espectadores se dava pela expressão identitária e cultural expressa nas produções, pois, se via atores conhecidos, uma ambientação nacional e histórias com pano de fundo que apontassem as questões locais diárias, tais quais a corrupção, a poligamia, as crenças religiosas extremistas e a tirania política (BALOGUN, 2007).
Além da arte imitar a vida real, com o desenvolvimento das produções, hoje a vida imita a arte. Diversos conceitos trazidos nos filmes do cinema nollywoodiano também são incorporados aos comportamentos diários, inclusive as outras formas de arte, como é o caso da escrita, que sofre alterações em termos de linguajar, estética e algumas pronúncias (GARRITANO, 2021).
A produção cinematográfica nigeriana enfrentou diversos desafios até atingir o patamar que é hoje. A demanda por mais filmes levou a um alargamento no processo de criação das obras. Em contrapartida, houve uma queda na qualidade dos filmes por ter uma escassez de profissionais qualificados para a produção do início ao fim (BALOGUN, 2007).
Atualmente a indústria artística, principalmente a de filmes em países em desenvolvimento como é o caso da Nigéria evidencia a capacidade de criação de conteúdo em proporção nacional sem a carência de financiamento externo, provando a independência local de lidar com seus próprios desafios (BALOGUN, 2007). O diagnóstico é apresentado por meio da crescente popularização das produções dentro do próprio território da Nigéria, que mesmo que certas regiões controladas pelo grupo extremista Boko Haram, a população ainda pode ter acesso à parte dessas produções.
O filme 666 - Beware the End Is At Hand (2007) é um dos famosos casos de sucesso das produções nigerianas. Uma evidente crítica às religiões ditas pagãs, relata a história do final dos tempos, em que Lúcifer manipula os humanos através de seus anjos do mau para trazer a destruição da Nigéria. Há a luta entre o bem e o mau representados aqui pelo anticristo e pelo pastor que tenta alertar a população sobre o futuro deles. Este filme pode ser analisado como realmente se apresenta, ou pode ser visto como uma metáfora sobre o período colonial trazendo o mal, como a figura do colonizador europeu e o bem, a população local que sofreu com as investidas maléficas do mau.
Sendo assim, é possível notar que as novas produções tentam incorporar novos elementos que representem a cultura e o modo de vida local, compilando harmonia e belezas às produções, sempre tendo em vista a satisfação do público.
Conclusão
Como demonstrado ao longo deste artigo, a “sétima-arte” deve ser vista através de lentes críticas, mas também como uma forma de influenciar, se tornando o elemento central na cultura dos países africanos, em específico aqueles que já são fortemente desenvolvidos em seu processo cultural, como é o caso da Nigéria.
Os filmes produzidos na África são uma forma de impor sua soberania sobre o seu território e de delimitar as suas capacidades tecnológicas e inovadoras, com atores, diretores, roteiristas, designers, produtores, cinegrafistas, se posicionando como fonte consolidada de produção artística e cinematográfica. Atualmente se pode encontrar um catálogo extenso dessas produções em sites de streaming, mesmo que o apelo ao público internacional seja irrisório em países de outros continentes.
Deste modo, mesmo não focando em mercados internacionais, as produções nollywoodanas conseguem gerar milhares de empregos, produzir renda e consequentemente ajudar na circulação de moeda do país, além, é claro, de exaltar a cultura local. O cinema nacional concede uma unidade social, mesmo com as diferenças étnicas, o que leva a uma compatibilidade e empatia maior no público foco.
Concluindo, com base nas análises aqui feitas é importante pontuar que as diferenças entre o cinema ocidental, aqui referimos a Hollywood e suas difusões, e o cinema local, Nollywood, é que neste último há representatividade e conectividade com o espectador, sendo exatamente o que os nigerianos procuram em suas produções, fazendo com que o cinema local seja visto como a representação da dissociação de um passado colonial e do surgimento de uma nova era a Nigéria.
Referências Bibliográficas
ARMES, Roy. O cinema africano ao norte e ao sul do Saara. Escrituras Editora. Cinema no Mundo: indústria política e mercado. São Paulo, Vol I, setembro de 2007. Disponível em: https://www.cena.ufscar.br/wp-content/uploads/2021/02/Cinema-no-Mundo-Indústria-Política-e-Mercado-África-Org-Alessandra-Meleiro.pdf. Acesso em: 29 de setembro de 2021.
BOUGHEDIR, Ferid. O cinema africano e a ideologia: tendências e evolução. Escrituras Editora. Cinema no Mundo: indústria política e mercado. São Paulo, Vol I, 2007. Acesso em: 29 de setembro de 2021.
CARRIERE, Jean-Claude. A Linguagem Secreta do Cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
CULTURA E MERCADO. O fenômeno do cinema nigeriano. Maio 2006. Disponível em: https://culturaemercado.com.br/o-fenomeno-do-cinema-nigeriano/. Acesso em: 29 de setembro de 2021.
DIAWARA, Manthia. African Cinema: Politics & Culture. Bloomington, Indiana: Indiana University Press, 1992.
GARRITANO, Carmela. Email Scams, Nollywood Movies, and the New African Literary Novel: Adaobi Tricia Nwaubani’s I Do Not Come to You by Chance in the Post-Global Age. Research in African Literarures. Vol.51, n. 4, 2021. P. 18-35, pp.19.
MACEDO, José Rivair. Cinema e Pensamento Africano. Semana da África na UFRGS. Porto Alegre, RS. Vol. 1, n. 1 (maio 2014), p. 24-29. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/115415/000963765.pdf?sequence=1. Acesso em: 29 de setembro de 2021.
OJIESON; Silver A. Interrogating Nollywood and its Sources of Funding: The Case of Invasion 1897. EJOTMAS: Ekpoma Journal of Theatre and Media Arts. Vol. 6, n. 1-2, 2017, p. 237 - 270, pp. 25.
TAVARES, M. (2011). O Processo do Rei: a história no palco do cinema. ARS (São Paulo), 9(17), 116-129. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ars/article/view/3101. Acesso em: 29 de setembro de 2021.
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