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A Crise Migratória de Marroquinos nos Enclaves Espanhóis

Um Fenômeno Recorrente, Acarretado pela Instável Relação entre Marrocos e Espanha.


Nazca, Jon. 2021


Resumo


Entre os dias 17 e 18 de Maio de 2021, o mundo assistiu o desespero de milhares de imigrantes marroquinos, incluindo crianças e adolescentes, tentando chegar a Ceuta a nado pelo Mar Mediterrâneo, e a pé através da fronteira terrestre. Ceuta, juntamente a Melilla, são cidades autónomas espanholas oficialmente desde 1995, e são a partir delas que milhares de imigrantes irregulares entram no território espanhol, vindos tanto do Marrocos quanto de outros países subsaarianos.

A fim de compreender esse fenômeno, o presente texto fará uma retrospectiva histórica da relação diplomática, econômica e política entre o Marrocos e a Espanha, e expor as causas da existência de um intenso fluxo migratório entre os dois países. Além disso, o texto também explicará o principal motivo pelo qual milhares de cidadãos marroquinos, de repente, conseguiram de maneira relativamente fácil atravessar a fronteira e chegar a Ceuta nos últimos dias 17 e 18.


No dia 18 de Maio deste ano, jornais e noticiários de todo o mundo exibiram em suas manchetes a notícia da devolução pelo governo espanhol de, aproximadamente, dois mil e setecentos migrantes vindos do Marrocos. Somente em dois dias (17 e 18 de Maio), quase oito mil migrantes irregulares – os quais desse total, em torno de mil e quinhentos eram crianças e adolescentes – chegaram a Ceuta através das praias de Benzú, ao norte, e de El Tarajal, ao sul, nadando pelo Mar Mediterrâneo ou caminhando vários quilômetros até a fronteira. Dessa forma, essa situação extremamente difícil vivenciada há décadas por cidadãos marroquinos, e também por subsaarianos vindos de diversos outros países, finalmente foi alvo da atenção pública.


Essa crise migratória, que como já dito não é um fenômeno atípico, ocorre atualmente em meio a uma forte tensão diplomática entre Marrocos e Espanha, relacionada principalmente ao conflito do Saara Ocidental, culminando em um agravamento maior ainda da questão migratória entre os dois países. Contudo, antes de esclarecer esse caso do Saara ocidental, é necessário compreender primeiramente as origens da complexa relação entre Marrocos e Espanha, e os motivos pelo qual há um acentuado deslocamento migratório de marroquinos ao território espanhol desde meados da década de 1990.

Marrocos e Espanha possuem um longo relacionamento que data, no mínimo, desde o século VIII no período das conquistas árabes na Europa, quando se organizaram os primeiros reinos ibéricos ao norte da península. Essa configuração perdurou até meados do século XV, momento em que os árabes foram expulsos do continente europeu pelos reis católicos, gerando um enorme fluxo migratório em direção aos territórios do norte da África, incluindo o Marrocos. Já no século XIX, a Espanha colonizou a região norte do território marroquino, viabilizando a migração entre os dois países e possibilitando a criação de comunidades espanholas no Marrocos. Além disso, essa relação se intensificou ainda mais quando em 1912 o norte do Marrocos, o qual abrangia as áreas de Rif e Jebala, se tornou protetorado da Espanha até o momento da independência marroquina, ocorrida no ano de 1956.

Porém, mesmo após sua emancipação, a influência espanhola no Marrocos permaneceu forte, em especial no norte do país. Assim, uma das maiores consequências dessa continuação da influência espanhola, foi o estabelecimento oficial em 1995 das regiões de Ceuta e Melilla como enclaves pertencentes à Espanha, sendo que ambas se localizam espacialmente no território marroquino. A partir disso, essas duas cidades autônomas são extremamente importantes para entender a crise migratória existente entre as duas nações, pois estes enclaves são justamente os principais destinos dos imigrantes por serem considerados “portas de entrada” à União Europeia. Desse modo, tanto os migrantes marroquinos vindos de locais próximos, como Fnideq, quanto de lugares distantes, como Tetuan e Tânger, e até mesmo migrantes vindos de outros países subsaarianos, veem em Ceuta e Melilla grandes vantagens de trabalho, renda e de uma melhor qualidade de vida.

Entretanto, mesmo que haja essa intensa ligação histórica entre os dois países, como já explicado anteriormente, é necessário entender que os deslocamentos migratórios que ocorreram no passado não tinham os mesmos aspectos e finalidades dos atuais. A migração que se configura hoje, a qual claramente foi exemplificada através do acontecimento dos dias 17 e 18, só se iniciou a partir da década de 1970, e sua intensificação ocorreu apenas nos anos 1990. Assim, as principais causas da dessa forte emigração do Marrocos à Espanha são as volumosas oportunidades de trabalho, além do fato de existir uma distância de apenas 15 km entre os dois territórios.

A Espanha, durante as décadas de 60 e 70, passou por um intenso processo de recuperação de sua economia, por meio da “implementação de uma política de modernização, somada à reestruturação dos grandes setores da economia espanhola (agricultura, construção naval, siderurgia, têxtil)” (Plihon, Rey, 2013, p. 96). Para mais, também houve uma forte abertura econômica no país a partir de 1986, ano em que o mesmo foi aceito na Comunidade Econômica Europeia (CEE), permitindo a entrada massiva de empresas transnacionais. Tudo isso contribuiu para que o crescimento econômico do país se elevasse nesse período, criando muitos postos de empregos, principalmente em áreas informais e menos qualificadas.

Foi nessa conjuntura que os marroquinos começaram a se lançar à Espanha, pois esses empregos não estavam sendo devidamente absorvidos visto que os espanhóis estavam ocupando cargos mais qualificados. Logo, realmente existia e ainda existe hoje, uma necessidade por esse grupo de imigrantes no país, no sentido de que são preferencialmente eles que realizam os serviços mais precários e de baixa qualificação por um preço barato. Ainda mais, é devido à presença deles que vem ocorrendo uma redução da idade ativa da população espanhola, além da manutenção do serviço de segurança social do país.

Já o Marrocos, possui uma economia marcada especialmente pelo setor agrícola, junto a uma pequena produção de petróleo e gás natural, e suas exportações são voltadas a produtos têxteis, a pesca e a recursos minerais, principalmente o fosfato. Apesar disso, mesmo sendo considerado um país em desenvolvimento e que detenha bons recursos minerais, o baixo crescimento econômico no território e suas fragilidades, como o alto desemprego, a necessidade de importações de matérias-primas e a dependência econômica com os países europeus, acabam se sobressaindo. Essas circunstâncias propiciam um cenário de alta emigração do território, e pela proximidade geográfica, a Espanha é um dos destinos mais benquistos pelos marroquinos.

Além disso, o próprio governo do Marrocos não firma grandes objeções à emigração, pois acredita que a mesma colabora de certa forma para o desenvolvimento econômico local, como uma “solução para o desemprego, para a balança de pagamentos e um mecanismo para aprimorar o conhecimento e as competências de seus nacionais - na espera que eles retornem” (SANTOS, 2013, p.101). Ademais, uma importante parcela do PIB é composta de remessas de dinheiro enviadas por migrantes marroquinos, os quais estão no território espanhol, destinados aos seus familiares que estão no Marrocos. Portanto, percebe-se que há uma clara interdependência entre as economias do Marrocos e da Espanha, a qual seus problemas são parcialmente resolvidos através da migração.

Todavia, foi com a entrada da Espanha na CEE em 1986 que as restrições às migrações entre os dois territórios ficaram mais rígidas, pois os países europeus viam o território espanhol como um lugar propício à entrada acentuada de imigrantes africanos. Assim, a Espanha precisou cumprir todos os requisitos exigidos pelos acordos da Comunidade, o que basicamente resultou na criação de uma forte política de contenção à imigração. Por isso, além do estabelecimento de uma cooperação regional quanto ao controle migratório internacional, houve também a institucionalização de normas, regulamentos e agendas políticas com foco específico no controle da migração e na fiscalização de fronteiras entre Marrocos e Espanha, com auxílio financeiro disponibilizado pela Comissão Europeia.

Diante da compreensão da relação entre os dois países no tocante à migração, é necessário também entender o que causou a atual tensão diplomática entre Marrocos e Espanha, e o motivo pelo qual este conflito ocasionou os acontecimentos dos dias 17 e 18 de Maio. Como já dito anteriormente, a principal razão pela qual os dois territórios vêm discutindo hoje é a questão do Saara Ocidental. Essa região, localizada ao Sudoeste de Marrocos, se tornou um protetorado espanhol em 1884, porém a partir dos anos 1960 foi questionada sua autoridade no local, tanto por forças internas, como a Frente Polisário, quanto externas, como o Marrocos, a Mauritânia e a Argélia. Desse jeito, em 1975 a Espanha abandonou o local por determinação de um referendo do Tribunal Internacional de Justiça.

Contudo, logo após a retirada das forças espanholas, o Marrocos anexou a região em seu território, ato que não foi acordado pelo referendo, iniciando um conflito armado que perdura até hoje entre as forças marroquinas e a Frente Polisário – grupo formado pelos nativos do Saara Ocidental. O Marrocos tem um enorme interesse nessa área, pois além de ser rica em minerais, principalmente em fosfato que é um dos produtos mais exportados pelo país, e possuir uma extensa área no litoral que possibilita a pesca, a região é considerada fundamental a fim de que o regime e a integridade territorial marroquina sejam conservados.

Nesse contexto, a principal relação entre essa disputa e a questão migratória Marrocos-Espanha, é que o governo marroquino precisa de aliados que o apoiem em sua legitimação de autoridade no Saara Ocidental, e tanto a Espanha quanto a União Europeia são alguns desses principais aliados. Além disso, o fato de que o Marrocos nunca aceitou plenamente que Ceuta e Melilla continuassem sob o domínio da Espanha, porém mesmo assim o governo releva de forma não agressiva o poder espanhol nesses locais, mostra essa necessidade de parceiros por parte do Marrocos. Logo, pela máxima prioridade da política externa marroquina ser o reconhecimento de sua soberania no Saara Ocidental, isso contribui para que as autoridades marroquinas e espanholas consigam conciliar, ao menos durante algum tempo, seus propósitos, sem diretamente ameaçar uma a outra.

Dessa forma, existe um acerto de interesses entre os dois países, no sentido de que o Marrocos tolera provisoriamente que os territórios de Ceuta e Melilla permaneçam sob o poder da Espanha, além de o governo marroquino estabelecer políticas migratórias mais duras e em conformidade com as espanholas, restringindo a migração de seus próprios cidadãos em direção aos enclaves. Em troca disso, a Espanha reconhece a autoridade do Marrocos no Saara Ocidental, mesmo que aconselhe que a região deva ser um pouco mais autônoma.

Contudo, esse ajuste de interesses foi rompido quando saíram notícias de que em Abril deste ano, a Espanha hospitalizou secretamente o líder da Frente Polisário, Brahim Gali, pois o mesmo estava com Covid-19, criando fortes tensões diplomáticas entre os dois países. Pouco tempo após a notícia ser veiculada, a fronteira que separa o Marrocos e Ceuta aparentemente deixou de ser fiscalizada, permitindo que um contingente humano conseguisse de forma relativamente fácil atravessar a fronteira, pois o governo marroquino simplesmente não impediu ou controlou a passagem desses migrantes. Desse jeito, percebe-se claramente que esse conflito diplomático levou a um desequilíbrio do consenso de interesses entre os dois territórios, impactando diretamente a questão migratória e expondo o quão vulnerável e inconstante é a relação entre Marrocos e Espanha.

Portanto, os conflitos entre estes Estados infelizmente impactaram severamente a população civil: duas pessoas foram encontradas mortas no mar tentando chegar à fronteira, diversas crianças e adolescentes se arriscaram à travessia, e até o dia 24 de Maio, sete mil e quinhentos imigrantes já tinham sido devolvidos ao Marrocos pelas autoridades espanholas. Mesmo com declarações vindas da União Europeia, da Espanha e até do Marrocos, é inegável a deliberada violação dos direitos humanos que ocorreu neste incidente, e que certamente pode voltar a acontecer, já que medidas concretas a fim de acabar com esse problema não foram tomadas até hoje.





Referências Bibliográficas


MOREIRA, Francisco Pedro dos Santos. O impacto das reivindicações de Marrocos sobre Ceuta e Melilha na evolução do seu relacionamento com Espanha, entre 1986 e 2014. 2020. Trabalho (Mestrado em Estudos Internacionais) - Instituto Universitário de Lisboa, Lisboa, 2020. Disponível em: https://repositorio.iscteiul.pt/bitstream/10071/21483/1/master_francisco_santos_moreira.pdf. Acesso em: 24 maio 2021.


MOROCCO commits to stop irregular departures into Spain - EU commissioner. Africa News, 18 maio 2021. Disponível em: https://www.africanews.com/2021/05/18/morocco-commits-to-stop-irregular-departures-into-spain-eu-commissioner/. Acesso em: 24 maio 2021.


SANTOS, A. B. As principais motivações para a migração internacional - o caso do Marrocos para a Espanha. Leviathan, São Paulo, n. 6, pp.92-113, 2013. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/4452/1/BEPI_n13_espanha.pdf. Acesso em: 24 maio 2021.


VARO, Laura J. Crise migratória na Espanha: “É a ‘marcha negra’, viemos de todo o Marrocos”. El País, Ceuta, 19 maio 2021. Disponível em: https://brasil.elpais.com/internacional/2021-05-19/crise-migratoria-na-espanha-e-a-marcha-negra-viemos-de-todo-marrocos.html. Acesso em: 24 maio 2021.


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