A Relação Bilateral entre Austrália e China
- Larissa Tenório dos Santos e Paulo Gabriel Silva Santos
- 28 de jun. de 2021
- 9 min de leitura
As tensões que levaram ao rompimento do acordo sobre as Rotas da Seda e o distanciamento entre Pequim e Camberra.

Taylor, Adam. 2020
Introdução
Em abril de 2021, a China anunciou a suspensão parcial da sua cooperação econômica com a Austrália, medida que chamou atenção devido ao seu teor retaliativo, já que sucedeu a recente decisão australiana de revogar um acordo estabelecido por Victoria, estado situado no sudeste da Austrália, sobre o projeto das Rotas da Seda.
Desde então, a mídia internacional vem recapitulando o histórico de tensões na relação bilateral entre China e Austrália, movimento que ocorre desde 2018, no intuito de contextualizar o atrito que desperta expectativas de disputas intensas no futuro.
Apesar do caráter comercial por trás das interações entre os países, as divergências ideológicas se sobressaem como catalisadoras do afastamento diplomático entre os agentes. Observa-se que, nos últimos 3 anos, a Austrália se pronunciou contrária a China em polêmicas envolvendo o desenvolvimento da tecnologia 5G, além de ter solicitado uma investigação em relação à origem do coronavírus, que foi vista como uma grande ofensa pela China.
Ainda que a China seja o primeiro parceiro comercial da Austrália, o governo do primeiro-ministro Scott Morrison tem se aproximado cada vez mais dos Estados Unidos da América e justificado a má relação com Pequim apresentando argumentos relativo à defesa da soberania australiana, que foi ameaçada por condutas antiéticas por parte do presidente chinês, Xi Jinping, através de táticas como a espionagem.
A complexa postura australiana, incentiva a elaboração do presente artigo que irá analisar a relação bilateral Austrália-China nos últimos anos, além dos interesses estadunidenses ao intervir contra a cooperação entre eles. Para tanto, os eventos que desencadearam na atual tensão existente entre Camberra e Pequim serão interpretados, transcorrendo desde o rompimento do acordo relativo ao projeto da Nova Rota da Seda, o posicionamento australiano quanto ao desenvolvimento da quinta tecnologia (5G) e a retaliação chinesa.
A NOVA ROTA DA SEDA E OS INTERESSES AUSTRALIANOS
O presidente chinês, Xi Jinping, fez o anúncio o projeto intitulado Nova Rota da Seda em meados de 2013 enquanto fazia uma viagem pela Ásia Central e desde então vem buscando consolidar parcerias ao redor do mundo para viabilizá-lo, com maior foco nas relações comerciais com a África e a Eurásia, mas não se limitando a essas nações. O cerne dos investimentos chineses concentra-se no setor de infraestrutura marítima e terrestre, sendo que os investimentos iniciais começaram na própria China seguindo para os portos da Indonésia, Índia, Sri Lanka, Quênia, Egito e União Europeia chegando, por fim, ao Vietnã, Malásia, Iêmen, Omã, Arábia Saudita e Turquia. No que tange os investimentos, na parte terrestre ou área, novamente seu início dá-se na própria China seguindo para o Tajiquistão, Rússia, União Europeia, e chegando ao Oriente Médio (BARCELLOS, 2020).
Pelo fato de não ter mencionado regiões de forma específica, a China concebeu essa iniciativa como sendo um projeto aberto, tornando possível a participação de qualquer país interessado. O Banco Mundial (2018) fez um levantamento das 71 economias presentes geograficamente ao longo dos corredores de transporte da Nova Rota da Seda, sendo que apenas para essas 70 economias, com exceção da China, os projetos, considerando os executados, em implantação ou planejados são estimados em aproximadamente US$ 575 bilhões (BANCO MUNDIAL, 2018).
Já no que tange ao acordo da Austrália, denominado Victoria's Belt and Road, as primeiras negociações ocorreram em meados de 2018 e abordavam aspectos comerciais, financeiros e políticos de cooperação. Já em 2019, houve uma apresentação mais robusta do acordo com eixo central pautado na infraestrutura, visto que havia grande interesse de empresas chinesas no programa de construção e infraestrutura de Victoria. Nesse contexto, o estado australiano de Victoria concordou em enviar regularmente delegações de empresas de infraestrutura à China para entender melhor as oportunidades, conforme discurso oficial. O acordo também previa o aproveitamento de outras áreas com potencial para cooperação como manufatura, biotecnologia e agricultura e previa um segundo acordo com o intuito de desenvolver o comércio e o acesso a mercados com interesse especial nos produtos agrícolas, alimentos, nutracêuticos e cosméticos, no entanto, nenhum dos acordos foi juridicamente vinculativo, o que explica a razão pela qual o governo australiano não teve tantas dificuldades para quebrá-los (AUSTRALIAN BROADCASTING CORPORATION – ABC, 2021).
Dessa forma, mesmo havendo o entendimento por parte do governo australiano de que a iniciativa da Nova rota da Seda era polêmica e implicava em riscos, em especial pela falta de transparência e pelo favorecimento das empresas chinesas na parceria, havia o senso comum de que se as promessas feita pela China fossem cumpridas os exportadores australianos poderiam ser beneficiados, visto os planos de importar US$ 2 trilhões de produtos e serviços dos países participantes da Nova rota da Seda. Isso seria viável visto que as empresas australianas possuem ampla experiência mercadológica em finanças, construção, design e engenharia, além do que, os exportadores também poderiam se beneficiar dos gastos que seriam realizados com infraestrutura, que elevariam a demanda por commodities para além da demanda consumido local, visto que a iniciativa aumentaria a renda regional (EXPORT FINANCE AUSTRALIA, 2017).
Abaixo um mapa onde podemos observar a dimensão da Nova Rota da Seda por terra e mar, onde as linhas laranjas indicam as rotas terrestres e as linhas pontilhadas azuis indicam as rotas marítimas:

Fonte: THE WORLD BANK, 2018. Disponível em: <https://www.worldbank.org/en/topic/regional-integration/brief/belt-and-road-initiative> Acesso em: 30 de maio de 2021.
Com esse breve apanhado de informações, pode-se ter uma visão mais clara da magnitude da iniciativa da Nova Rota da Seda, que se for amplamente consolidada pode reduzir o tempo de viagem ao longo dos corredores econômicos em 12%, aumentar o comércio regional entre 2,7% e 9,7%, aumentar a renda regional em até 3,4% e tirar 7,6 milhões de pessoas da extrema pobreza (BANCO MUNDIAL, 2018). Tendo isso em vista, é possível considerar que, mesmo com os riscos inerentes ao acordo de Victoria, essa não seria uma empreitada que geraria benefícios a somente um dos países. Manter o acordo poderia ser uma via a ser considerada com mais cautela pelo governo australiano.
AS RELAÇÕES ECONÔMICAS E POLÍTICAS ENTRE AUSTRÁLIA E CHINA
Segundo o Departament of Foreign Affairs and Trade (DFAT), do governo australiano, as relações diplomáticas entre o país e a China tiveram início em 1972, estabelecendo uma forte parceria bilateral econômica e comercialmente, além de uma relação cultural e comunitária duradoura. Em 2014, o primeiro-ministro australiano, Tony Abbott, e o presidente chinês, Xi Jinping, definiram sua relação como “comprehensive strategic partnership” – indicando uma ampla parceria estratégica.
Em relação à cooperação entre os países, a China se consolida como o sexto maior investidor estrangeiro da Austrália (em 2019 investiu US$46 bilhões). O governo australiano aderiu ao “one-China policy”, ou seja, não reconhece Taiwan como um país e as relações comerciais entre ambos é marcada por diversos acordos e transações, sendo o suficiente para classificá-los como bons parceiros antes das tensões começarem (DFAT, 2021). Considerando que antes de 2018, as relações bilaterais entre Austrália e China eram afáveis, compreende-se que o “Victoria's Belt and Road deal” foi estabelecido com a promessa de benefício mútuo para as partes envolvidas.
A iniciativa Memorandum of Understanding (MOU, 2018), acordado entre o país asiático e o país da oceania, não era extensa em detalhes, porém, previa cooperação financeira e política através do investimento chinês na infraestrutura de Victoria, proporcionando grandes projetos nas áreas da manufatura, biotecnologia e agricultura. Daniel Andrews, o Premier de Victoria, era a favor do acordo que previa um crescimento substancial do estado, porém, a pandemia do coronavírus acabou atrasando a finalização dos planos.
Ademais, a tensão entre Camberra e Pequim, que crescia paralelamente à elaboração do acordo para Victoria, dificultou a decisão de cooperação que cabia a Andrews, pois, apesar dos conflitos, o Premier defendia a aprovação insistindo no argumento: "This relationship is far too important to farmers, to manufacturers, to workers, to profits for Victorian companies and therefore prosperity for our state" ("Esta relação é muito importante para os agricultores, os fabricantes, os trabalhadores, os lucros das empresas vitorianas e, portanto, traria prosperidade para o nosso estado", tradução livre).(Australian Broadcasting Corporation – ABC, 2021).
Todavia, o apoio de Andrews não foi suficiente e, em dezembro de 2020, as negociações foram anuladas através do Foreign Arrangements Scheme, iniciativa que deu ao Governo Federal o poder de vetar acordos entre estados, territórios e entidades estrangeiras que fossem contra a política externa da Austrália, simbolizando assim o rompimento australiano do acordo relativo à Nova Rota da Seda (Australian Broadcasting Corporation – ABC, 2021).
AS CAUSAS POR TRÁS DO DISTANCIAMENTO ENTRE CAMBERRA E PEQUIM
Na primeira semana de maio de 2021, o pronunciamento de Peter Dutton, Ministro da Defesa australiano, foi amplamente comentado, pois durante seu discurso no Dia de Anzac mencionou o aumento da tensão com a China. Poucos dias depois, Scott Morrison, Primeiro-Ministro australiano, anunciou que investiria US$ 580 bilhões em modernizações militares e jornais locais publicaram instruções confidenciais, por parte do Major-geral da Austrália, que descreviam um combate com a China como um evento de “alta-probabilidade” (CNN Brasil, 2021).
A implícita ameaça de guerra levantou questionamentos quanto à intenção australiana, já que a China acumula gastos militares 10 vezes maiores do que a Austrália, além de ser uma potência nuclear (CNN Brasil, 2021). Com tamanha discrepância de poder bélico, a confiança do primeiro-ministro, Scott Morrison, em desafiar a China, ainda que indiretamente, indica que a iniciativa do país receberá apoio externo.
Tal indagação se originou em 2018, quando agentes da Australian Signals Directorate (ASD) – Agência ultrassecreta – testemunharam a capacidade parcial da tecnologia 5G desenvolvida pela Huawei, empresa de tecnologia chinesa. Desde então, a Austrália vem emitindo alertas quanto aos riscos do poder bélico Chinês e tem recebido o apoio de países como os Estados Unidos da América e o Reino Unido.
Em relação ao potencial científico por trás do desenvolvimento da quinta geração de tecnologia (5G), o diretor geral da ASD, Mike Burguess, definiu sua importância como sendo “um elemento integral das comunicações fundamentais da infraestrutura crítica de um país, de energia elétrica ao fornecimento de água e à rede de esgotos” (Folha de São Paulo, 2021). Ainda assim, a maior preocupação externa quanto à aquisição da tecnologia por outra nação está associada ao potencial do seu desenvolvimento bélico.
Com isso, o que se entende é que o desejo de impedir uma possível hegemonia chinesa foi o que levou países como a Austrália, Canadá, Nova Zelândia, Reino Unido e os Estados Unidos, denominados como os Cinco Olhos, a se unirem na tentativa de restringir a Huawei. A importância atribuída ao caso é tamanha que as campanhas por trás do objetivo possuem um caráter agressivo e passível de grande esforço, não havendo espaço para considerações amistosas. Afinal, foi após o alarme australiano que o primeiro-ministro solicitou a investigação quanto à origem do novo coronavírus, ação que ofendeu o governo chinês intensamente (Folha de São Paulo, 2021).
Tendo em vista que apoiar a restrição chinesa implica no apoio ao desenvolvimento tecnológico de Washington, principal rival chinês na produção do 5G, nota-se que, apesar do extenso histórico comercial com a China, a Austrália vem alinhando cada vez mais seus interesses com o ocidente, provocando uma postura retaliatória em Xi Jinping que, em 2020, pôs empecilhos econômicos contra uma dúzia de produtos australianos, como o vinho, carne bovina e a cevada (G1, 2021).
Além disso, no mesmo ano, o governo chinês emitiu notas à imprensa australiana expondo os fatores que estavam afetando a relação bilateral entre eles, onde foi exposto justamente o alinhamento de Morrison com o governo estadunidense, ao tomar partido em meio a disputa entre Pequim e Washington. Foram ao todo 14 tópicos de divergências, aos quais o governo australiano se pronunciou alegando que a emissão de documentos não-oficiais não os impediria de agir de acordo com seus interesses nacionais. Os Estados Unidos também se pronunciaram. Através do twitter, o Conselho de Segurança Nacional (CSN) alegou que “Pequim estava irritada com as medidas tomadas pela Austrália para proteger sua soberania e conter a espionagem da China" e incentivou outros países a se posicionarem contra a intervenção chinesa (Estado de Minas, 2020).
Conclusão
Em suma, compreender os fatores que levaram o governo australiano a quebrar os acordos referentes a Nova Rota da Seda com a China evidencia quais aspectos políticos foram os principais fatores na tomada dessa decisão, pois ainda que alguns dos receios australianos fossem razoáveis, a postura do governo não se mostrou igualmente razoável.
Ao fazer acusações e insinuações hostis à China, como quando o governo recusou a tecnologia 5G chinesa sob a prerrogativa de razões ligadas à segurança nacional ou quando solicitou uma investigação internacional sobre a origem da pandemia de Covid-19, o governo australiano não se ateve unicamente à importância estratégica que a China tem. Tendo em conta a relevância comercial chinesa para a Austrália, existe o risco de uma lacuna comercial à medida em que o governo chinês for encontrando alternativas para os produtos importados de origem australiana. Em um movimento contrário, a relação estabelecida com os Estados Unidos ganha relevância estratégica, sendo um país capaz de fazer frente à política chinesa na Ásia.
Ademais, o rompimento dos acordos, em dezembro de 2020, teve bases políticas e o distanciamento entre Pequim e Camberra se mostra mais profundo a cada dia, em especial pela proximidade crescente entre Austrália e Estados Unidos. É possível supor que uma reaproximação com a China não seria de fácil realização. Por fim, embora o rompimento dos acordos fosse algo em potencial, considerando que já havia certo receio australiano no que se refere a certas cláusulas dos acordos, a maneira pela qual ele se deu tem um impacto tão negativo quanto os rompimentos em si para as relações entre os dois países.
Referências Bibliográficas
ABC NEWS. What is China's Belt and Road Initiative and what were the four deals the federal government tore up?. Disponível em: https://www.abc.net.au/news/2021-04-22/what-was-in-victoria-belt-and-road-deal-with-china/100086224. Acesso em: 29 mai. 2021.
AUSTRALIAN GOVERNMENT. China country brief: Bilateral relations. Disponível em: https://www.dfat.gov.au/geo/china/china-country-brief. Acesso em: 29 mai. 2021.
BARCELLOS, Bruna Leal; MÈRCHER, Leonardo. Nova Rota da Seda: China e sua maximização econômica por recursos de poder. Geosul. Florianópolis, v. 35, n. 77, p. 377-398, dez./2020. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/geosul/article/view/76685/44698. Acesso em: 29 mai. 2021.
CNN BRASIL. Autoridades da Austrália insinuam guerra com a China. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/2021/05/05/autoridades-da-australia-insinuam-guerra-com-a-china. Acesso em: 29 mai. 2021.
ESTADO DE MINAS. Aumenta tensão diplomática e comercial entre China e Austrália. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2020/11/19/interna_internacional,1207644/aumenta-tensao-diplomatica-e-comercial-entre-china-e-australia.shtml . Acesso em: 29 mai. 2021.
G1. China suspende acordo econômico com a Austrália. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/05/06/china-suspende-acordo-economico-com-a-australia.ghtml. Acesso em: 29 mai. 2021.
THE WORLD BANK. Belt and Road Initiative. Disponível em: https://www.worldbank.org/en/topic/regional-integration/brief/belt-and-road-initiative . Acesso em: 29 mai. 2021.
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