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Os Reflexos da Segunda Guerra Civil do Sudão nas Olimpíadas


Unmiss\Nektarios Markogiannis. 2013

A guerra civil no Sudão do Sul começou em dezembro de 2013, dois anos após a independência.



Resumo

As Olimpíadas de Verão de Tóquio, ocorridas em 2021, contaram com a presença da Equipe Olímpica de Refugiados pela segunda vez na competição, sendo que a primeira foi na edição de 2016 no Rio. No time, estavam presentes quatro sul-sudaneses, os quais fugiram de seu país no período da Segunda Guerra Civil Sudanesa, conflito sucedido entre 1983 e 2005, e todos estes atletas se estabeleceram no assentamento de refugiados da ONU em Kakuma, no Quênia.


Palavras-Chave: Olimpíadas. Refugiados. Segunda Guerra Civil Sudanesa.



Introdução


A 32° edição dos Jogos Olímpicos de Verão, com sede em Tóquio e inicialmente programada para acontecer em 2020, ocorreu oficialmente entre os dias 21 de Julho e 08 de Agosto de 2021, prorrogada em um ano por conta da pandemia de Covid-19. Contando com aproximadamente 11.090 atletas de 204 países e dois comitês olímpicos, houve uma delegação que chamou a atenção por sua particular condição: o Time Olímpico de Refugiados. A equipe participou da competição deste ano com 29 atletas naturais de dez países diferentes, competindo em modalidades como atletismo, taekwondo, judô, ciclismo, entre outros.

Dentre este grupo extremamente diverso, dez competidores são de origem africana. Em relação a seus países de nascimento, esses atletas vêm do Sudão do Sul, República do Congo, Eritreia, Sudão e República Democrática do Congo. A partir disso, os que aqui serão analisados são quatro competidores do Sudão do Sul, os quais todos notadamente fugiram de seu território no contexto em que o local estava inserido na Segunda Guerra Civil Sudanesa e no período pós-guerra.

Com base nisso, o presente artigo irá fazer uma breve apresentação do surgimento da Equipe Olímpica de Refugiados, assim como identificará os atletas sul-sudaneses presentes na competição deste ano, e também irá expor os principais eventos e consequências da Guerra Civil no Sudão ocorrida entre 1983 e 2005.


A Equipe Olímpica de Refugiados: RIO 2016 e TÓQUIO 2020.


A primeira participação da delegação de refugiados ocorreu nas Olimpíadas de Verão do Rio de Janeiro em 2016, quando cinco corredores de meia distância sul-sudaneses, dois judocas congoleses, dois nadadores sírios e um maratonista etiópio, resultaram em dez atletas presentes nos jogos. Na época, segundo declaração do Alto Comissário da ONU para Refugiados, Filippo Grandi, a presença destes atletas na competição foi uma “homenagem à coragem e perseverança de todos os refugiados em superar a adversidade e construir um futuro melhor para si e suas famílias”.

As Olimpíadas ocorridas este ano em Tóquio, contaram com a participação de 29 atletas na Equipe de Refugiados, quase três vezes mais do que na competição passada. Além disso, dez deles são originários de países africanos, e quando analisadas as origens destes dez atletas, quatro são naturais do Sudão do Sul, o que representa 40% dos competidores africanos dentro da equipe, um número significativo. Com base nisso, é interessante notar que todos os quatro pediram refúgio no campo de refugiados de Kakuma, localizado no Quênia, durante o contexto da Segunda Guerra Civil Sudanesa e no imediato pós-guerra.

Assim, estes atletas são: Anjelina Nadai Lohalith, que fugiu do país em 2002 aos sete anos por conta da guerra e pediu refúgio em Kakuma, e foi lá que descobriu seu talento e paixão pela corrida; James Chiengjiek Nyang, que fugiu de sua cidade natal, Bentiu, aos treze anos para não ser sequestrado por rebeldes que forçavam crianças a se alistarem a guerra, e foi em sua escola de Kakuma que começou a treinar corridas; Paulo Amotun Lokoro, que deixou o país em 2006 para escapar dos efeitos da guerra e partiu para Kakuma, onde se destacou nas provas de atletismo; e Rose Lokonyen Nathike, que fugiu do país em 2002 aos dez anos devido ao conflito, e partiu para Kakuma onde correu sua primeira corrida e lá descobriu seu talento.

Assim, é importante saber a conjuntura crítica em que estes competidores fugiram de seu território por conta dessa guerra civil, a qual afetou a vida de milhares de pessoas, incluindo a dos mencionados acima. Por isso, será feita uma exposição sobre os eventos da Segunda Guerra Civil Sudanesa.



A Segunda Guerra Civil Sudanesa (1983-2005)


A Segunda Guerra Civil Sudanesa, embate que durou pouco mais de vinte anos, tem antecedentes históricos extremamente importantes e que devem ser entendidos para que se possa compreender por completo as principais causas desta disputa. Assim, um destes precedentes elementares é a Primeira Guerra Civil Sudanesa, ocorrida entre 1955 e 1972, e que tinha como objetivo central a busca pela autonomia política da região sul do país. O combate, disputado entre as áreas norte e sul do território, iniciou-se logo após o processo de independência do Sudão juntamente à sua unificação e integração, provocando uma forte “apreensão entre a população sulina, receosa da volta da opressão de seus vizinhos do norte após a retirada total dos britânicos, e com uma eventual “arabização” forçada da região” (MOELLWALD, 2015).

Assim, segundo Guarak (2011), a anexação involuntária de diversos locais e comunidades do território em um único país, organizada de maneira forçada pelas elites árabes e europeias, acabou resultando em inúmeros episódios de violência e, por fim, à gênese da guerra (MOELLWALD, 2015). Para mais, as diferenças identitárias nas sociedades de ambas as regiões, influenciadas pela colonização árabe-britânica, e o fato de o poder do novo país ter sido concentrado nas mãos quase exclusivamente da parte Norte, fizeram com que o Sul lutasse por sua autonomia. Logo, apesar do desfecho do conflito alguns anos depois, com a assinatura de um acordo de paz – o Tratado de Adis Abeba – que estabilizou relativamente o confronto através da criação de um governo autônomo para a região sul, as tensões entre as duas áreas logo renasceram, e com mais força que a primeira vez.

Assim, onze anos após o encerramento do primeiro embate, eclodiu a Segunda Guerra Civil Sudanesa. A razão primordial do renascimento do conflito foi a anulação, por parte do então presidente sudanês Yaafar Nimeiri, do acordo de paz previamente assinado, abolindo a região autônoma do Sul e instaurando em todo o território do Sudão um Estado islâmico regido sob a sharia, as leis islâmicas (SILVA, 2005). Essa mudança provocou fortes insatisfações nos sulinos, desde soldados e civis até líderes políticos e intelectuais, estimulando a ocorrência de diversos motins e deserções nas cidades do Sul, assim como a fundação do Movimento Popular de Libertação do Sudão (SPLM/A) (MOELLWALD, 2015). A organização foi criada em 1983 por refugiados sudaneses localizados na Etiópia, e tinha como objetivo central transformar o Sudão em uma nação democrática, multi-religiosa, multi-étnica e multi-racial (SILVA, 2005).

Apesar das adversidades dentro e fora do próprio movimento pró-independência – o último caso pois o governo sudanês instigava a rivalidade entre os grupos de libertação, armando grupos sulinos a fim de tentar enfraquecer a mobilização – pouco a pouco o SPLM/A foi conquistando territórios para além da região Sul, em especial após a derrubada de Nimeiri do poder em 1985. A queda do então presidente, ocasionada a partir de um golpe de Estado, foi causada por diversos aspectos, como a enorme crise econômica em que o país se encontrava, e também à insatisfação geral quanto ao modo que a legislação era aplicada no território (MOELLWALD, 2015).

Dessa forma, durante o curto comando militar transitório, tentativas de se estabelecer a paz no Sudão foram organizadas entre o governo, o SPLM/A e grupos políticos oposicionistas, resultando até na assinatura da Declaração de Koka Dam (SILVA, 2005). Porém, a permanência da sharia como lei no país foi uma questão não solucionada entre os atores, e ficou decidido que o assunto seria resolvido na administração posterior (SILVA, 2005). Assim, um mês depois, em Abril de 1986, as eleições programadas pelo governo militar para definir uma nova administração civil ocorreram, e Sadiq al-Mahdi ascendeu ao poder como primeiro-ministro.

No período de liderança de al-Mahdi, a guerra civil se intensificou em proporções extraordinárias, resultando em milhares de mortes e milhões de refugiados. O governo aumentou a assistência dada a milícias para que estas atacassem regiões estratégicas, houve fortes dificuldades em se alcançar acordos de paz entre as partes, além do fato de o país estar inserido em graves problemas econômicos (MOELLWALD, 2015). Por estas razões, houve uma forte pressão internacional contra a administração de al-Mahdi, tanto que os anos de 1988 e 1989, segundo Moellwald, foram os que mais ganharam repercussão internacionalmente no tocante ao conflito, em especial pelas graves crises humanitárias que estavam ocorrendo.

Assim, em meio a esta intensa crise institucional, um novo golpe de Estado ocorreu em Junho de 1989, derrubando al-Mahdi de seu cargo e colocando Omar al-Bashir no poder. Com a ascensão de al-Bashir e a formação de um novo governo em sua liderança, não ocorreram mudanças efetivas, se comparadas à administração anterior, ou negociações firmes para se encerrar a guerra. Pelo contrário, o presidente tomou medidas drásticas a fim de derrubar seus opositores políticos e acirrar suas diferenças com o SPLM/A, declarando estado de emergência e negando-se veementemente a abolir a sharia no país, sendo o islamismo radical a base de sua política (SILVA, 2005). Isso contribuiu para que uma nova fase violenta da guerra civil emergisse no território, inclusive após a realização de eleições questionáveis e a formação de um governo supostamente democrático por al-Bashir em 1996.

Neste meio tempo, pouco a pouco o SPLM/A foi conquistando diversas áreas por todo o país, combatendo seus rivais e expandindo o movimento através de acordos com grupos menores, e à integração destes à organização. Enquanto isso, o governo cada vez mais foi perdendo forças, tanto por conta do avanço ofensivo dos sulinos, quanto pelas intensas pressões internacionais e militares à sua administração (SILVA, 2005). Assim, apesar de muitos receios por parte do governo e a despeito da adoção de várias medidas autoritárias pelo mesmo, e principalmente por conta da preocupação em ser retirado do poder à força, al-Bashir e o SPLM/A, juntamente à seus principais aliados, iniciaram negociações mais firmes a partir de 2002.

Por fim, em Abril de 2004 finalmente foi assinado um cessar-fogo entre as partes, e no dia 09 de Janeiro de 2005 firmou-se o Acordo Compreensivo de Paz (CPA) entre o vice-presidente sudanês, Ali Osman Taha, e o representante do SPLM/A, John Garang. De maneira geral, ficou acordado no tratado que um governo autônomo do Sudão do Sul seria formado durante um período transitório, e que após este tempo, um referendo seria feito para que a população sulina decidisse pela independência da região ou pela integração do local ao Sudão (MOELLWALD, 2015). Contudo, várias questões ainda ficaram pendentes entre ambos os lados do embate, incluindo a questão humanitária que não foi sequer considerada no CPA, e por isso, a “paz” se tornou algo extremamente frágil de ser plenamente mantido, tanto que um novo confronto, a Terceira Guerra Civil Sudanesa, foi instaurado em 2013.



Conclusão

A partir do entendimento desta guerra, e associando este contexto aos atletas refugiados do Sudão do Sul que participaram das Olimpíadas de Tóquio, pode-se perceber o quão prejudicial e destruidor este conflito foi para a população civil, tanto ao Norte quanto ao Sul. Segundo o relatório do U.S. Committee for Refugees, o número estimado de mortes durante apenas dezessete anos de embate, entre 1983 e 2001, foi de quase duas milhões de vítimas. Além disso, a quantidade de sul-sudaneses deslocados internamente no mesmo período foi de cerca de quatro milhões de pessoas, o que representava quase 80% da população sulina. Ademais, nestes dezessete anos de guerra, aproximadamente 500.000 sul-sudaneses se tornaram refugiados.

Para mais, a criação do assentamento de Kakuma em 1992, onde os atletas olímpicos bem como a maioria do povo sul-sudanês pediu refúgio durante o conflito, está diretamente relacionada à conjuntura analisada anteriormente. Desde o início da guerra em 1983, sempre existiu uma forte aliança entre o SPLM/A e a Etiópia. Porém, quando o governo deste país caiu em 1991, a nova administração fechou os campos de refugiados e de treinamento do exército sulino do SPLM/A que existiam no território. Logo, isso fez com que um grande contingente de refugiados sul-sudaneses que vivia na Etiópia se deslocasse para o noroeste do Quênia e para Uganda, e por isso a ONU decidiu criar um assentamento na cidade de Kakuma para amparar as pessoas fugidas da desastrosa guerra.

Desse modo, de volta à atualidade, a presença viva de exemplos de sobrevivência dos atletas refugiados na competição, em um período extremamente difícil para a humanidade, sem dúvida é muito valoroso e significativo. Porém, é preciso destacar que esta superação da condição vulnerável de refugiado não deve ser romantizada: os atores que se envolvem em guerras, sejam eles Estados ou grupos, precisam encontrar soluções diplomáticas e pacíficas a fim de resolver seus conflitos de forma a não prejudicar a vida de civis que pouco têm relação com estes embates. Assim, as vidas de milhares de pessoas estão constantemente em risco quando há guerras, independente da natureza destas, resultando em poucos desfechos para estes povos: provavelmente a morte, ou a vida precária de refugiado. O exemplo de triunfo dos competidores sul-sudaneses foi sim marcado de sorte e perseverança, todavia, infelizmente não são todos que detém estas vantagens.



Referências Bibliográficas


CONHEÇA os atletas refugiados que competem nos jogos paralímpicos de Tóquio 2020. ACNUR Brasil, Julho 2021. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/2021/07/09/conheca-os-atletas-refugiados-que-competem-nos-jogos-olimpicos-e-paralimpicos-de-toquio-2020/. Acesso em: 10 ago. 2021.


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ESTES 10 atletas refugiados competirão nos jogos olímpicos Rio 2016. ACNUR Brasil, Junho 2016. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/2016/06/03/estes-10-atletas-refugiados-competirao-nos-jogos-olimpicos-rio-2016/. Acesso em: 10 ago. 2021.


MOELLWALD, Gabriel Cabeda Egger. O LONGO PROCESSO DE CONFIGURAÇÃO DO ESTADO SUL-SUDANÊS: uma investigação histórica. 2015. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015.


MOREIRA, Gonçalo. Jogos Olímpicos de Tóquio 2020 em números. Olympics, Julho 2021. Disponível em: https://olympics.com/pt/noticias/jogos-olimpicos-de-toquio-2020-em-numeros. Acesso em: 10 ago. 2021.


SILVA, Camila Rodrigues. ESTADO, NAÇÃO E PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS NO SUDÃO. 2005. Monografia (Bacharelado em Relações Internacionais) – Centro Universitário de Brasília, Brasília, 2005. Disponível em: https://repositorio.uniceub.br/jspui/bitstream/235/9774/1/20168974.pdf. Acesso em: 10 ago. 2021.


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